domingo, 10 de janeiro de 2016

Nikita.

Meus pais tiveram cachorros desde sempre, não me lembro de nenhum período em que não houvesse ao menos um pelo meio. Casas pequenas, casas maiores, não importava o tamanho do imóvel, a questão é que o cachorro sempre fez parte de nossa família. Tinha o pai, a mãe, os filhos e o cachorro. Sempre. Cachorros grandes, cachorros pequenos, cachorros de raça, vira-latas, muitas vezes mais de um. Para minha mãe era como se fosse um filho a mais, afinal pra quem tem sete, um ou dois a mais não vão fazer tanta diferença. Vinham de todos os lugares. O pai ganhava de um amigo, um filho achava um na rua, alguém da família tinha uma ninhada para despachar. E acho que Dona Delmira não teria sabido viver sem um cachorro ao pé.

Alguns foram famosos, como a Chispa, uma mestiça de basset salsicha esperta como ela só. Não falava não porque não soubesse, era porque não precisava. Estava sempre uns três lances à frente. Ia rolar uma confusão? Ela já sabia e se antecipava, procurando um esconderijo. Ia chegar alguém querido? Ela começava a fazer festa antes do carro virar a esquina. Era esperta mesmo, aquela menina. Mas era a cachorra do meu pai, vivia atrás dele, alimentando até algumas brincadeiras familiares, daquelas repetitivas. “Sai daí, Chispa!”.

E um dia ela chegou. Não sei de onde veio, simplesmente apareceu. Uma cachorra grande, seus dois ou três anos, mestiça de Pastor Alemão com Pastor Belga, pelagem mais densa que a dos pastores alemães, escura no dorso, peito amarelo e, acho, umas manchas amarelas perto dos olhos. Apareceu na Rua Ouro Branco e foi ficando. Meus irmãos logo adotaram e começaram a pedir para a mãe para ficarem com ela. Dona Delmira sabia das coisas, foi assuntando antes de decidir. Um pote com água e outro com comida no jardim, portão aberto, e ela vinha. Ficava um pouco, comia, bebia, descansava e ia embora, mas sem se afastar muito. Não sei quando foi que ela e minha mãe se acertaram, mas um dia ela foi adotada em caráter permanente, ganhou um nome e nunca mais foi embora. Nikita. E ela foi a companheira de minha mãe.

Desenvolveram uma amizade tão forte e tão próxima, que nem precisavam falar uma com a outra. Bagunça no quintal? Minha mãe olhava para Nikita e ela ia dar uma conferida. Voltava, olhava para minha mãe e esta já sabia se era besteira ou se era algo que exigisse sua atenção. Mas não era uma cachorra dada a intimidades com qualquer um, não se dava ao desfrute. Nada deste negócio de barriga para cima para alguém fazer carinho, ela não era destas. Não era agressiva, destas de ficar latindo e mostrando os dentes, mas impunha respeito por seu comportamento sério. Gostava de todos na casa, brincava com os menores, mas era da minha mãe.

Certa vez minha mulher, Maria Clara, deixou nossa filha Patricia ainda bebê aos cuidados de minha mãe para ir a algum lugar. Dona Delmira acomodou a criança dormindo no sofá e comandou para Nikita: Tome conta. Minha mulher volta do compromisso, entra e se dirige ao sofá para pegar a Patricia. Quem diz? Maria Clara vai por um lado, Nikita cerca, vai por outro, Nikita faz um jogo de corpo. Nesta criança você não mexe, devia pensar. Maria Clara percebeu e teve que chamar minha mãe, que só disse: Nikita deixa. Pronto, resolvido.

Nikita foi prolífica, teve várias crias, entre as quais o poderoso Thor, um cachorro grande, forte, totalmente preto, companheiro inseparável de meu irmão Ricardo, e que salvou minha mãe de um assalto no jardim de casa, dominando o meliante que pedia: Pelo amor de Deus, dona, tire este cachorro de cima de mim. Aprendeu, bestão? Outra filha de Nikita foi a Ula, que foi filhotinha para minha casa. Nikita viveu uns treze ou quatorze anos, cachorros grandes vivem menos, e deixou muitas saudades.


Depois dela vieram outras, minha mãe preferia fêmeas, Dashas, Tróias, de raças diversas e temperamentos variados. Mas acho que nenhuma delas substituiu Nikita no coração de Dona Delmira. Acho que poderíamos dizer que eram almas gêmeas. Devem estar juntas novamente.