Meus pais tiveram cachorros desde sempre, não me
lembro de nenhum período em que não houvesse ao menos um pelo meio. Casas
pequenas, casas maiores, não importava o tamanho do imóvel, a questão é que o
cachorro sempre fez parte de nossa família. Tinha o pai, a mãe, os filhos e o
cachorro. Sempre. Cachorros grandes, cachorros pequenos, cachorros de raça,
vira-latas, muitas vezes mais de um. Para minha mãe era como se fosse um filho
a mais, afinal pra quem tem sete, um ou dois a mais não vão fazer tanta
diferença. Vinham de todos os lugares. O pai ganhava de um amigo, um filho
achava um na rua, alguém da família tinha uma ninhada para despachar. E acho
que Dona Delmira não teria sabido viver sem um cachorro ao pé.
Alguns foram famosos, como a Chispa, uma mestiça de
basset salsicha esperta como ela só. Não falava não porque não soubesse, era
porque não precisava. Estava sempre uns três lances à frente. Ia rolar uma
confusão? Ela já sabia e se antecipava, procurando um esconderijo. Ia chegar alguém
querido? Ela começava a fazer festa antes do carro virar a esquina. Era esperta
mesmo, aquela menina. Mas era a cachorra do meu pai, vivia atrás dele,
alimentando até algumas brincadeiras familiares, daquelas repetitivas. “Sai
daí, Chispa!”.
E um dia ela chegou. Não sei de onde veio,
simplesmente apareceu. Uma cachorra grande, seus dois ou três anos, mestiça de
Pastor Alemão com Pastor Belga, pelagem mais densa que a dos pastores alemães,
escura no dorso, peito amarelo e, acho, umas manchas amarelas perto dos olhos.
Apareceu na Rua Ouro Branco e foi ficando. Meus irmãos logo adotaram e
começaram a pedir para a mãe para ficarem com ela. Dona Delmira sabia das
coisas, foi assuntando antes de decidir. Um pote com água e outro com comida no
jardim, portão aberto, e ela vinha. Ficava um pouco, comia, bebia, descansava e
ia embora, mas sem se afastar muito. Não sei quando foi que ela e minha mãe se
acertaram, mas um dia ela foi adotada em caráter permanente, ganhou um nome e
nunca mais foi embora. Nikita. E ela foi a companheira de minha mãe.
Desenvolveram uma amizade tão forte e tão próxima,
que nem precisavam falar uma com a outra. Bagunça no quintal? Minha mãe olhava
para Nikita e ela ia dar uma conferida. Voltava, olhava para minha mãe e esta
já sabia se era besteira ou se era algo que exigisse sua atenção. Mas não era
uma cachorra dada a intimidades com qualquer um, não se dava ao desfrute. Nada
deste negócio de barriga para cima para alguém fazer carinho, ela não era
destas. Não era agressiva, destas de ficar latindo e mostrando os dentes, mas
impunha respeito por seu comportamento sério. Gostava de todos na casa,
brincava com os menores, mas era da minha mãe.
Certa vez minha mulher, Maria Clara, deixou nossa
filha Patricia ainda bebê aos cuidados de minha mãe para ir a algum lugar. Dona
Delmira acomodou a criança dormindo no sofá e comandou para Nikita: Tome conta.
Minha mulher volta do compromisso, entra e se dirige ao sofá para pegar a
Patricia. Quem diz? Maria Clara vai por um lado, Nikita cerca, vai por outro,
Nikita faz um jogo de corpo. Nesta criança você não mexe, devia pensar. Maria
Clara percebeu e teve que chamar minha mãe, que só disse: Nikita deixa. Pronto,
resolvido.
Nikita foi prolífica, teve várias crias, entre as
quais o poderoso Thor, um cachorro grande, forte, totalmente preto, companheiro
inseparável de meu irmão Ricardo, e que salvou minha mãe de um assalto no
jardim de casa, dominando o meliante que pedia: Pelo amor de Deus, dona, tire
este cachorro de cima de mim. Aprendeu, bestão? Outra filha de Nikita foi a
Ula, que foi filhotinha para minha casa. Nikita viveu uns treze ou quatorze
anos, cachorros grandes vivem menos, e deixou muitas saudades.
Depois dela vieram outras, minha mãe preferia
fêmeas, Dashas, Tróias, de raças diversas e temperamentos variados. Mas acho
que nenhuma delas substituiu Nikita no coração de Dona Delmira. Acho que
poderíamos dizer que eram almas gêmeas. Devem estar juntas novamente.