quinta-feira, 29 de março de 2012

Land Rover

Éramos muitos, éramos duros, éramos metidos, enfim era coisa normal. A Turma do Palacete reunia-se, é claro, em frente ao “O Palacete”, como era conhecida uma mansão existente na Rua Herval, no bairro do Belém. Não sei o motivo, mas quase não se via os moradores da residência, às vezes parecia não haver ninguém. A frente da casa, com quase cinquenta metros de muros baixos encimados por gradis era um convite a que nos sentássemos e ficássemos horas fazendo nada, o que era nossa especialidade. Chegávamos aos poucos, um de cada vez, sempre esperando não ser o primeiro, aquele que esperava pelos demais. Não havia horários pré-definidos, valia qualquer coisa, mas a concentração maior começava no inicio da noite, quando estavam todos liberados de eventuais compromissos (poucos) e prontos para jogar conversa fora por longas horas.  Os temas eram quase sempre os mesmos: carros e namoradas, coisas que nem todos tinham. Costumávamos ficar até altas horas fazendo piadas uns com os outros, gozando os mais ingênuos, provocando os mais irritáveis, contando mentiras verdadeiras ou verdades mentirosas, como preferirem, estas coisas que os jovens faziam naquele tempo. Hoje parece que não é mais assim, pena.

Os carros eram uma paixão quase platônica já que a maioria era menor de idade, sem carteira de motorista, e os já devidamente habilitados não tinham o que dirigir, só quando o pai emprestava o carro, o que nem sempre acontecia. Mas sabíamos tudo a respeito, marcas, motores, potências, corridas, por ai. Dois ou três tinham seus próprios carros e eram admirados pelos demais, inferiorizados pela mendicância automobilística existente naquele tempo. Não havia grandes carros, é certo, a indústria nacional estava no começo, não era a festa que é hoje, Volkswagens, Gordinis, DKWs e olhe lá. Muitos pais ainda tinham velhos carros estrangeiros, Chevrolets, Fords, Dodges, Buicks, quase sempre mal conservados e que viviam dando problema. Mas era o havia, lambíamos os beiços quando podíamos dirigir algum destes trambolhos ambulantes.

Sempre que escuto alguém mais velho dizendo que tem saudades dos carros de seu tempo costumo pensar: “Mas saudades do quê, porra? Eram umas merdas. Qualquer carro moderno é muito melhor”.

E então, certo dia surgiu o Land Rover do Neto.

Neto era o mais velho de quatro irmãos meio aloucados, filhos do Sr. José e Dona Teresinha, que deviam ter uma paciência enorme para agüentar aqueles moleques. Para que se tenha uma noção das peraltices, costumavam treinar seus cachorros para serem corajosos colocando fogo em jornais colocados em voltam das casinhas em que prendiam os apavorados animais. “É pra perderem o medo”, diziam. Nunca morreu nenhum cachorro, é bem verdade, mas que era estranho isto era. 

E o Neto ainda não tinha carta de motorista, o que era um puta problema. Sr. José até emprestaria o carro, mas sem carteira nada feito. Ou aparecia alguém habilitado ou teriam que esperar, não adiantava reclamar. Eu tinha carteira de motorista, acabei virando motorista freqüente do bólido inglês.

O Land Rover não era uma destas coisinhas mimosas e valiosas que vocês conhecem agora e que simbolizam alta qualidade automobilística. Era um jipe meio velho, um pouco destrambelhado e que aquecia a todo momento, nos obrigando a andar com garrafas de água e panos para, quando necessário, molharmos a maldita bomba de gasolina que vivia dando problema e que provocava paralisias no veículo nos piores momentos e nos lugares mais inadequados. A grana pra gasolina também era curta, as vaquinhas para abastecer eram freqüentes e os passeios curtos. O tanque de gasolina era abastecido por bocal existente embaixo do banco do carona, coisa muito segura.

Mas foi uma das épocas mais divertidas da minha vida. Saudades daquela turma e daquele Land Rover.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Pingos nos “is”.

Outro dia fui visitar minha mãe, o que faço muito menos do que deveria, que está com 90 anos e sem sair da cama há mais de um ano. Magrinha, fala pouco, a memória já não ajuda, um caquinho. Quando fui me despedir ela soltou a frase mortal: “Até logo, meu amor, volte logo”. Aquele “meu amor” foi como um piparote no cérebro, uma chacoalhada para que eu me lembrasse quem era, realmente, aquela velhinha que estava ali deitada. Claro que eu era “seu amor”, ela nunca me tratou de outra forma, nem eu nem nenhum de meus seis irmãos, todos “seus amores”. Ela nunca deixou que pairasse a menor dúvida sobre isso, sempre nos amou a todos e sempre deixou isto claro. Digo isso para recolocar as coisas em sua real perspectiva na minha vida. Já disse que tenho cinco netos, os dois mais velhos, Leonardo e Murillo, vieram com meu genro Wagner de seu primeiro casamento, mas gosto deles como se fossem “de verdade”. Os outros três são Vitor e Henrique, filhos de minha filha Patrícia e do Wagner e a Nathalia, filha de minha filha Priscila e do Alexandre (Sam).

Convivi muito com os três, na tarefa de ajudar Maria Clara a cuidar dos pimpolhos, em ocasiões diferentes. Vitor morou conosco quase um ano e era meu companheiro de caminhadas pelo bairro na hora do cafezinho ou em outras atividades. Nana, miudinha, buscávamos na casa da Priscila para ficar conosco enquanto a mãe trabalhava. E foram muitos meses. Henrique também ficou conosco, todos os dias, até começar a ir para a escola com dois anos, mais ou menos. Virou meu acompanhante fixo e tornou-se muito popular na vizinhança. Minha mulher e eu adoramos todos e gostamos quando ficam conosco, apesar de alguma bagunça que acaba acontecendo. Alguém já disse que netos são um bônus que é dado para compensar a velhice e é verdade.

Mas cabe a importante ressalva: Vitor e Henrique não são os meus príncipes, nem Nathalia é minha princesa. São príncipes e princesas de suas mãe e pais. Minhas princesas são Priscila e Patrícia e meu príncipe é Eduardo, meus filhos. Eles são os responsáveis por minhas maiores alegrias (e maiores preocupações), eles me ensinaram aquelas coisas que as crianças costumam ensinar aos adultos e que nós custamos a reconhecer. Pri e Pata eram as gracinhas da minha fase adulta, lindinhas, amorosas, alegres. Eduardo era meu companheiro, meu amigão – é até hoje, foi pra ele que comprei os primeiros bonecos de ação, os primeiros videogames. Foram os primeiros dias de aula destes três que me deixaram aflito, suas doenças que me atormentaram, seus vestibulares, suas carteiras de motoristas, por ai. São eles que entendem minhas piadas, até as raríssimas boas, minhas expressões de mau-humor, minhas manias.       

 Então, já que não sei se chegarei aos noventa anos como minha mãe – acho que não, vou dizer agora pra não esquecer, amo muito meus netos, mas meus filhos são meus grandes amores, para sempre.

Que Maria Clara não se engane, ela é “Hors Concours” nesta história toda.