terça-feira, 25 de novembro de 2014

Azul.

Parece que o primeiro que viu a tal nuvem foi um menino de dez ou onze anos e que jogava bola na rua, em frente de casa. Tinha um nome de apóstolo, o menino não a nuvem, Tiago, Lucas, Mateus, Pedro, Paulo, João, não importa. Como havia um mato de eucaliptos perto da sua casa, o menino viu quando começou a subir aquela fumacinha azulada e estranhou. Chamou pelo pai: Pai vem ver um negócio! O pai postergou: Depois eu vou, estou ocupado. Mentira estava com preguiça. Não sabia que não teria tempo de ir depois. O menino continuou jogando seu solitário campeonato mundial de futebol, no qual ele ganhava sempre, e quando olhou de novo a nuvem já não estava mais lá.

A nuvem dirigiu-se para uma praça aonde havia uma estranha construção. Pareciam dois pratos, um em posição normal e o outro emborcado, com um pregador de roupas gigante no meio. Gilvásio, motorista de um cara importante notou aquela coisa azul flutuando, mas pensou: Já vi tanta coisa neste lugar, que nada mais me espanta. E continuou mandando mensagens de texto para a namorada (que a mulher dele não saiba disto). Pobre Gilvásio. E a nuvem foi baixando, baixando, e parou a poucos metros de altura sobre uma rampa que dava acesso a um dos estranhos pratos.

Foi ai que a coisa começou. Um fulano graúdo que estava chegando ao local foi interceptado por um repórter que mandou, na bucha: “Excelência, é verdade que o senhor está envolvido nesta nova roubalheira?”. O excelêncio fez cara de zangado e respondeu: Jamais! Nunca me apropriei de um centavo que não fosse fruto de meu trabalho. Foi ele dizer isso e a nuvem envolveu o entrevistado que começou a ficar azul, primeiro os pés, depois a cor foi subindo e quando chegou à cabeça, o elemento morreu ali mesmo, na rampa. Caralho, exclamou o repórter, matei o homem. Mal ele imaginava que era só o início de uma sucessão de estranhos acontecimentos.

O que poucos sabiam é que aquela era só a primeira de várias nuvens daquele tipo, que tinham surgido não se sabe como. Outra estava de tocaia perto de uma grande agência de publicidade, em outra cidade, na qual se discutia a nova campanha de uma famosa indústria de alimentos para o lançamento de um novo produto, quase todo artificial, mas que por conter menos de 1% de suco de alguma coisa, continha na embalagem, em destaque: “Com suco natural da fruta”. A estagiária bonitinha que estava enfeitando a reunião do diretor da agência com o cliente até perguntou: “Mas isto não é propaganda enganosa?”, o que levou os outros presentes a caírem na risada. Foi a conta. A nuvem penetrou pelos dutos do ar condicionado, tornando o ar da sala levemente azulado, a mesma cor que começou a colorir tanto o diretor da agência como o da indústria, que morreram ali mesmo, feitos bonecos de cera. Azuis, é claro.  

Começaram a chegar notícias parecidas de todos os cantos daquele país. Pessoas morriam dando entrevistas, fazendo reuniões, falando ao telefone, dando explicações descabidas e justificativas improváveis. Tudo azulzinho. Naquela construção dos pratos com o pregador gigante, por exemplo, morreram todos. A bem da verdade, sobrou um rapaz que vendia pipocas em um carrinho na calçada. Era mudo. As nuvens multiplicavam-se, eram milhares, milhões, sumiam e apareciam do nada, de forma inexplicável. Políticos, corretores religiosos, jornalistas, advogados, juízes, médicos, autoridades, líderes de movimentos sociais, dirigentes de partidos, publicitários, todos os que tentaram usar os acontecimentos a seu favor, foram dizimados pela névoa assustadora. Uma menina, as mulheres são sempre mais espertas, avisou: Não pode mentir! Mentiu, morre. Foi um alvoroço. E agora? Ninguém sabia como se comportar, estavam muito acostumados a mentir, o tempo todo.

Foi um massacre, a população daquele lugar foi reduzida a um terço do número original em menos de uma semana. Tiveram que organizar grandes fogueiras para queimar os cadáveres, não havia como dar conta de tantos mentirosos. Mas, pouco a pouco, as coisas foram entrando nos eixos. Com uma população menor o país ficou mais administrável, mais fácil de organizar. Parece até que hoje em dia é uma grande nação. Desconheço o final desta história, vou tentar me informar melhor e depois eu conto.


Já pensou?! Cuidado com O Azul!


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Bares e Botecos.

Não sou um frequentador regular de botecos, nunca fui. Existem muitos homens que adoram um bar, um boteco, uma padaria, qualquer estabelecimento onde possam encostar a barriga no balcão, pedir um engasga-gato ou uma cerveja e trocar umas idéias com outros habitantes deste singular mundo etílico, com o atendente, com o garçom ou com qualquer vítima que consigam angariar para suas conversas sem fim. Nada contra os adeptos deste esporte, só não é minha praia.

Mas nem sempre foi assim. Quando tinha doze ou treze anos, pouco mais, pouco menos, costumava acompanhar meu pai no trabalho e depois dele. E o Sr. Raphael era do tipo que gostava de um boteco, ora se era. E me carregava junto em suas excursões. Foi assim que conheci o Bar Guanabara, inicialmente na Rua XV de Novembro e depois na Av. São João, entre a Praça Antonio Prado e o Anhangabaú, o Bar do Léo, na Rua Aurora, entre outros estabelecimentos de renome entre os pinguços da época. Mas os mais comuns eram os do Brás mesmo, mais próximos da Mecânica Aguilar e, muitas vezes, no caminho de casa, o que facilitava as coisas.

O mais visitado era o Bar do Rúbio. Bastava atravessar a Rua do Gasômetro, local onde estava instalada a Oficina (outro nome da empresa da família) e pronto, já estávamos lá. Não lembro o nome de todos os membros da família proprietária do renomado estabelecimento, sei que havia o pai, o tal Rúbio, um filho e uma filha, que se revezavam no atendimento. A filha em particular era o motivo do ódio mortal que minha mãe dedicava ao pobre bar. Tenho impressão que Dona Delmira se achava ameaçada pela beldade que atendia no balcão e que ouvia, com a dedicação dos comerciantes, às piadas do meu pai, seus comentários e reclamações. Um perigo reconheço. Mas posso garantir que Seu Raphael nunca passou dos limites da boa educação e gentileza. Ao menos não na minha frente.

Havia outro boteco, bem próximo, bastando caminhar até a esquina, Rua do Lucas se não me falha o neurônio de plantão. Mas não tinha o mesmo, digamos, apelo, que o Bar do Rúbio, então era reservado para idas mais fugazes, aquele golpito, como gostava de definir meu progenitor, uma bicadinha só, e mais nada. E pelo número de adeptos de tão prestigiosa atividade lítero-esportiva entre os familiares, agregados, associados, passantes e curiosos, o faturamento deste ramo da economia na região estava garantido.

Mas eu gostava mesmo era do Bar do Pinto, que não era no Brás e sim no Pari, na Rua João Boemer se não me engano. Este bar deve ter sido a origem do apelido “pé-sujo” que alguns botecos com menos cuidado que o recomendável passaram o ostentar. Tenho a impressão que o dono, Senhor Manoel Pinto, de óbvia origem lusitana, nunca tinha jogado um balde de água no chão daquela porra, desde a inauguração, séculos atrás. Os belos ladrilhos e azulejos que um dia enfeitaram a construção, eram cobertos por uma poeira eterna, indelével. Mas era o máximo! O Seu...Manoel, era um bom conversador, tinha excelentes produtos importados e não tinha pressa em fechar seu famoso estabelecimento. Passávamos horas naquele lugar. Mas o mais legal é que eu era autorizado a bebericar um pouquinho de um treco chamado Gerupiga, Jeropiga, ou algo assim. Não tenho certeza que fosse isso mesmo, mas era uma bebida docinha, com uvas-passas maceradas, uma delícia. Mas só um pouquinho, moleque, que você ainda não pode beber. As regras eram muito rigorosas, quase sempre. E para acompanhar, ótimos queijos, tremoços, salames, copas, tudo vindo lá da santa terrinha para alegria dos convivas. Uma delícia! Este sujão era imbatível.




Não entendam estes escritos como uma crítica ao meu pai, pelo contrário. Sr. Raphael me mostrou mais do mundo do que eu fui capaz de fazer com meus filhos, e eu sou muito grato. Na verdade estes registros são para evitar que o maldito alemão os apague do meu miolo. E para registrar minhas saudades destes botecos, de meu querido pai e, principalmente, de mim mesmo.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Minha alma canta...


Recomendação inicial: Abra o link da maravilhosa música de Tom Jobim, ao começar a ouvi-la volte para o texto. Se não gostar do que escrevi, ao menos a música é espetacular.

http://youtu.be/bQM-vP5BcGw

Acho que eu teria doze ou treze anos quando fui com meu pai ao Rio de Janeiro pela primeira vez. A Mecânica Aguilar tinha clientes e fornecedores na cidade maravilhosa (não me contive – vou tentar não repetir) e o Sr. Raphael costumava ir ao Rio de vez em quando para tratar de negócios. Não sei de quem foi a idéia de que eu fosse junto, talvez da minha mãe que queria que eu ficasse de olho naquele bonitão, coisa que eu nunca fiz, nem sabia o que era isso. Mas aproveitei muito as viagens que se seguiram, talvez umas seis ou sete.

Meu pai se hospedava no Hotel Presidente, um hotel meia-boca perto da Praça Tiradentes no centro da cidade, muito próximo a um teatro de revista famoso na época, talvez fosse o Teatro João Caetano, não sei, cheio de vedetes exuberantes e atraentes. Havia vários restaurantes pela região e eu, chucro, achava aquilo tudo o máximo. Talvez fosse mesmo. Íamos de carro, o que dava a oportunidade de curtir a viagem, com paradas mijatórias e para lanches eventuais, uma delícia. O trânsito do Rio já era uma merda naquele tempo, não sei do que reclamam hoje em dia.

Dos tais clientes ou fornecedores lembro-me de um tal Fioravanti, que fazia as duas coisas. Fornecia matéria prima para a empresa da família e comprava laminações e partes das mesmas. Pelas roupas que usava, pelo sotaque e pelas tramóias em que vivia envolvido parecia um mafioso. Acho que era mesmo. Havia outros, mas o tempo apagou seus nomes da minha claudicante memória. Havia, também, uma coisa chamada “desmanche de navios”. A primeira vez que ouvi falar nisso não sabia o que pensar. Quer dizer que desmancham navios? Para que? Como se faz isso? O que eu não sabia é que os navios eram feitos de ferro e aço, matéria prima para a indústria em que meu pai atuava. Volantes (rodas) gigantescos, chapas, eixos, mancais, estas coisas brotavam dos tais navios desmanchados e eram cobiçados por todos os que trabalhavam no ramo. Lembro-me de ferros-velhos no Caju e em Niterói, onde fomos algumas vezes. Uma vez subíamos a pé uma ladeira para ir a uma fábrica e passamos por alguns barracos de madeira, uma favela na verdade, em um deles havia um rádio ligado e no barraco uma mulher cantava, acompanhando a artista. Fiquei fascinado com aquilo, nunca esqueci.

Mas minha área era mais recreativa, passeios, restaurantes, praias, estas coisas. Afinal eu tinha doze ou treze anos, não esqueçam. E nisto o pai era um craque, gostava das coisas boas e sabia aonde ir. Conheci diversos restaurantes bons naquela época. Real Peixada, no centro, La Fiorentina, no Leme, Bar Luiz, na Rua da Carioca, Confeitaria Colombo, um melhor do que o outro.

Mas o que mais me impressionou e que guardo na memória até hoje foi o Albamar, próximo da Praça XV, num velho mercado já desativado naquela época. Chegava-se ao restaurante por um minúsculo e antigo elevador, daqueles com portas pantográficas (tomou, papudo?), em que cabiam duas ou três pessoas, no máximo. No salão que havia no piso superior janelões mostravam a Baia da Guanabara, maravilhosa. A comida, nem te conto, polvos, camarões, peixes deliciosos. Até um reles abacate batido que comi de sobremesa em uma das vezes foi excelente. Existe até hoje, e parece que ainda é bom. Se quiserem dêem uma olhada neste link: http://www.destemperados.com.br/experiencias/albamar-almoco-com-vista-e-mais-legal

Outra curiosidade foi o restaurante de Romeu Pellicciari, na Barra da Tijuca. A barra era um puta deserto naquele tempo, não havia nada. Romeu havia sido um jogador de futebol famoso, que após parar com o futebol tinha montado aquele restaurante no Rio de Janeiro. Meu pai conhecia a família toda, vários irmãos e uma única irmã, todos com nomes de personagens de óperas, gostava de ressaltar. Romeu, Radamés, Iago e Maria. Que porra de ópera tem uma Maria? Mas, vá lá. O restaurante era bom, lembro-me de haver comido Camarões à Paulista, aqueles fritos com casca no alho e óleo, deliciosos.

Havia também a parte folclórica destas viagens. Visitas a parentes de parentes, com identificações estranhas. A prima Clara do Rio, que não era minha prima, mas das minhas, estas sim, primas, Clara e Suely. Tinha um irmão cujo nome jamais lembrarei, nem vou tentar. Havia o primo Nicola, que morava em Rio Comprido, e que também não era nosso primo, mas sim primo de meu tio Nicola, pai da Sandra e do Walter. Mas ao dizer “Clara do Rio” ou “primo Nicola” já se sabia de quem você estava falando.


Estas viagens eram uma quebra da rotina em que me via envolvido. Deveria ter aproveitado mais, só não sabia como. Adorava viajar com meu pai. Boa, Sr. Raphael!

Brinde especial:



domingo, 10 de agosto de 2014

Fazenda Pedra Branca – O Fim.

Marchas, contramarchas, fechos e desfechos.


Mais uma com o primo Marinho Linhares. A fazenda Pedra Branca tinha duas paisagens predominantes, lagoas e montanhas. Seis ou sete lagoas, uma porrada de morros, morretes, morrinhos, montanhas, não havia monotonia visual. A maior das lagoas ficava à esquerda de quem entrava pela estrada de acesso e ia para a casa sede. Era de grandes dimensões, tanto que havia até um barco a remo que usávamos para passeios e pescarias. Tinha muita traíra e muito cará, que hoje chamam de tilápia. Ou não é a mesma coisa? Cheguei a pescar uma tartaruga de água doce, um cágado, sei lá, um bicho destes esquisitos e que veio no anzol. Pois então, estávamos eu e o Marinho perto da lagoa, fazendo alguma merda, jogando pedras nos patos talvez, quando reparamos que a jabuticabeira estava carregada de frutos. Devia ser verão, já que estávamos só de calções, indumentária suficiente para dois moleques que iriam sujar-se até os cabelos, ficava mais fácil para nossas mães lavarem a roupa. Da visão das frutas à subida na árvore foi um zupt, e lá estávamos nós comendo jabuticaba no pé. De repente começamos a escutar um zumbido, cuja intensidade foi aumentando. Não sei quem viu primeiro, mas o alerta foi cruel: Abelhas! Havia uma enorme colméia de abelhas na árvore e nós não tínhamos visto. Toca pular fora e correr. Mas não adiantou muito, elas vieram atrás de nós com seus ferrões, um perrengue. A solução foi pularmos na lagoa, só tirando a cabeça da água para respirar e ver se as putelas tinha ido embora. Demorou mas foram, que alívio. Mas ficamos sem as jabuticabas.


O armário da Dona Pepa. Minha avó guardava, cuidadosamente, algumas iguarias das quais meu avô gostava. Latas de aliche, de atum, compotas de frutas, doces, azeitonas, tremoços, alguns vinhos e outras delícias. Para proteger tal tesouro da sanha dos netos e demais esfomeados, ela trancava o armário com uma chave que ficava sob sua guarda, não soltava nunca. Sabia com quem estava lidando. Acontece que meus avós ficavam um tempo na fazenda e de vez em quando passavam um tempo em São Paulo. Em muitas destas ocasiões meu pai ou meus tios iam para lá levando amigos, entre os quais havia alguns quase delinquentes, segundo me lembro. O que faziam os fanfarrões? Soltavam os parafusos da parte traseira do armário, apropriavam-se do que não lhes pertencia, comiam, bebiam, e recolocavam a tampa como se nada tivesse acontecido. Ao voltar minha pobre vó Pepa deparava-se com um dilema. Onde foram parar as coisas que deixei aqui? Acho que ela nunca soube, pobrezinha. Malfeitores!

A venda perto do Sitinho. O Sitinho era uma área que não havia sido comprada no início, pertencia a outras pessoas e só foi adquirida tempos depois, mas nunca perdeu sua identidade própria, sempre foi chamada de O Sitinho, apesar de fazer parte do conjunto Pedra Branca. Saindo-se da fazenda por um caminho que passava por ele, dava-se numa estradinha vicinal que levava a outras propriedades. E lá havia a tal venda. Um pequeno armazém onde os trabalhadores do local compravam alguns gêneros de primeira necessidade e tomavam uma cachacinha, que ninguém é de ferro. Os dois irmãos que cuidavam daquele comércio logo ficaram amigos do meu pai, que tinha muita facilidade em fazer amigos, gostava de uma conversa de bar e de tomar um engasga-gato para abrir o apetite. Acho que algumas vezes foi cavalo quem levou Seu Raphael de volta para casa. Algum tipo de GPS eqüino.   

Fogo morro acima. Dormia-se cedo na Pedra Branca. Não havia televisão e todo mundo ia para a cama lá pelas oito e meia ou nove horas da noite. Já tínhamos deitado quando alguém bateu palmas e começou a chamar: Seu Raphael, Seu Raphael. Meu pai foi ver do que se tratava e eu fui atrás. Um dos empregados contando que tinha começado um incêndio num capão de mato em uma das invernadas em que ficava o gado. Havia risco de um estouro da boiada ou, pior, de algumas cabeças morrerem. Meu pai se vestiu, colocou suas botas e ia saindo quando peço: Posso ir junto? Claro que não, é perigoso e além do mais alguém tem que ficar cuidando de sua mãe e das crianças. Vacilei e acabei ficando. Acho que ele me deu um truque e eu nem percebi. Dá-lhe John Wayne!

Tico quebrou o braço. Em uma das viagens o convidado infantil foi o Tico, meu primo, por parte de mãe, Joaquim Ibitinga, que deve ser um pouco mais novo que meu irmão Raphael, uns sete ou oito anos mais novo do que eu. Brincadeira de crianças vocês sabem como é, só param quando cansam ou quando dá merda. Deu merda. Tico balançava numa porteira, pra lá e pra cá, desequilibrou-se, caiu e quebrou o braço. E agora, o carro não está aqui, voltou para São Paulo e só vem nos pegar na sexta-feira. Vamos de trator, comanda Seu Raphael. Foram buscar o trator, engataram uma carretinha de carregar coisas, onde minha mãe e o Tico embarcaram. Novamente recebo a missão de guardar o forte e evitar que os índios seqüestrem meus irmãos e as outras crianças. Demoraram muito, tratores não costumam ser muito ligeiros, algumas horas. A encrenca começou à noitinha e só voltaram de madrugada, com o Tico exibindo um gesso novinho em folha, para inveja dos demais. Mas a alegria dele durou pouco. Dois ou três dias depois começou a ficar com os dedos roxos, o gesso estava muito apertado. Médico de merda. Toca ao recém-promovido a cirurgião-chefe, Seu Raphael, achar uma serra adequada e remover o maldito torniquete. Foi bem sucedido, lógico, era meu pai.

Mas pouco a pouco comecei a ter outros interesses, não queria mais ir para a fazenda, preferia ficar em casa, ver minha namorada, conversar com meus amigos, coisas de adolescente, esta estranha raça. E minhas viagens para a Pedra Branca foram rareando, até que acabaram. Depois de algum tempo a fazenda foi vendida, a Mecânica Aguilar já não conseguia sustentá-la. Ficaram somente as lembranças.

Acabou-se a história. Entrou por uma porta, saiu pela outra, quem quiser que conte outra.






sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Fazenda Pedra Branca – O Meio.

Naquele tempo, enquanto as onças bebiam água, as cobras fumavam e as porcas torciam o rabo, aconteciam coisas na fazenda que, vistas de longe, parecem mentiras. Talvez algumas sejam mesmo, minha memória anda me pregando algumas peças, às vezes lembro-me de coisas que nunca aconteceram, o que chamo de Síndrome da Memória Criativa. Mas aquelas que comentarei a seguir são verdades verdadeiras, como diria a Emília do Sítio do Pica Pau Amarelo, podem acreditar. Em algumas destas ocorrências participei diretamente, como vilão ou como vítima, outras vi acontecer como testemunha ocular e algumas são lendas, histórias que ouvi contar, mas nas quais acredito.

Aiou, Silver! Após minha assustadora estréia no mundo eqüestre, até que me sai bem nestas atividades. Fui pegando gosto pela coisa e acabei virando um cavaleiro bem razoável, até um pouco atrevido. Não sei se havia outros, mas me lembro bem de três cavalos na Pedra Branca, Pingo, Completo e Tordilho. Pingo era um cavalo marrom de baixa estatura, ruim pra danar, vivia tentando morder quem estivesse na sela. Completo era um marchador grandão, perna dura, com um andar incômodo, saltitante, que cansava o motorista. Já o Tordilho era especial. Sei que isto não é nome de cavalo, mas tipo de pelagem, mas era assim que era chamado. Manga larga, acinzentado claro, alto, esbelto, rápido pra danar, era meu preferido. Cheguei a ajudar o Arnoldo a apartar o gado, levando os ruminantes de um pasto para outro, quase um vaqueiro profissional. E Vandré nem tinha composto Disparada ainda.


Sempre que chegava à fazenda uma das minhas primeiras providências era pedir que encilhassem o Tordilho e saia cavalgando, um Cavaleiro Negro de Itu, ao menos na minha imaginação. E como corria aquele bicho, uma beleza. Desembestava por aquelas estradinhas, espalhando poeira para todo lado. Numa ocasião meu primo Marinho estava conosco, passando alguns dias, férias eu acho. Como não sabia andar a cavalo, montou na garupa de Tordilho para que fossemos a algum lugar que não lembro agora. Eu na sela, ele na garupa, fora da sela. Começo a me entusiasmar, a correr, a fazer curvas mais arriscadas, de repente escuto Marinho me chamar, aflito. Uma, duas vezes, ele me chama. Olho para trás e não vejo nada, cadê o Marinho? Presto atenção e ele tinha escorregado para baixo do cavalo e estava, desesperado, segurando com pernas e braços para não cair. Não caiu. Cavalinho bom, aquele, um Pegasus. Depois daquela época nunca mais montei.


Tiro ao Álvaro! Todo mundo tinha algo que atirava naquele hospício. Espingardas e revolveres de diversos calibres, incluindo aquelas de pressão (chumbinho), estilingues e outros artefatos perigosos. Eu tinha um revolver de pressão, daqueles que você dobra o cano, coloca um chumbinho, a mola fica acionada e ai, pimba, você dispara. Andava com aquilo para baixo e para cima atirando em coisas móveis, imóveis, e assemelhados. Entre as besteiras que fiz com aquele treco, a maior foi com minha irmã Silvia. Alguém tinha matado um passarinho, acho que não fui eu, mas não garanto. Ai acendeu-me no miolo aquela luzinha da idéia de jerico e digo: Silvia segure este passarinho pelas pernas, que eu vou atirar nele. Ela ficou assustada, é claro, e perguntou: mas não tem perigo? Claro que não, fique sossegada. Tinha tudo para dar merda, e deu. Acertei o pulso da pobrezinha, que começou a chorar de dor. E nem me denunciou para meu pai, que teria me enchido de bordoadas se soubesse do ocorrido, merecidamente. Obrigado, Silvia e me desculpe.

Estilingues tive vários, de forquilha de goiabeira – os melhores, com borracha cortada de câmaras de pneus, ou de ferro – vendidos na Loja Diana, com borrachas de uso farmacêutico, as chamadas tripa-de-mico. E também fiz muita besteira com eles, quebrei vidros, furei colméias de abelhas – maior burrada, entre outras travessuras. Numa destas acertei minha prima Ângela, pequena ainda, com uma estilingada dolorosa. O pai dela, meu tio Luiz, ao ver a filha chorando começou a gritar comigo, espumando, quase me bateu. Jogou a porra do estilingue no telhado da casa, aquele nunca mais recuperei. Foi justo. Várias facas e canivetes, arcos e flechas, feitos por mim ou comprados, também fizeram parte de meu arsenal. Eu era um perigo ambulante, mas me achava um herói de revista em quadrinhos. Moleque maluco, sô!

No próximo episódio: fogo no morro, a venda na saída do sitinho, o sumiço de comida do armário de minha avó, o Tico quebrou o braço e o que mais eu me lembrar. Não percam. 

Olha ai outros moleques se divertindo no sítio da avó. Que saudades.



quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Fazenda Pedra Branca – O Início.

No Gênesis o início foi o Verbo. Na Pedra Branca o início foi a verba. Após tomar posse da propriedade, Seu Aguilar, como meu avô era chamado, começou um ciclo de obras, reformas, plantios, criações, construção de lagos e de tanques, abertura de estradas internas, parecia um imperador romano levando a civilização a algum cafundó dos Judas perdido na barbárie. Já existiam benfeitorias e construções, mas faltava muita coisa. Não havia uma casa principal para a família, só casas de colonos. Ele construiu uma grande sede, com cinco quartos e um banheiro, gostava desta proporção, no alto de uma elevação que havia após um paiol na parte central da área. A casa tinha uma enorme varanda na frente, com uma belíssima vista panorâmica. Além da parte social, existiam diversos quartos de apoio aonde eram guardadas tranqueiras diversas, incluindo um espantoso quartinho das botas, com dezenas de pares, com numeração variada, que ficavam à disposição dos interessados. Precisasse de uma bota era só ir até lá e ver se alguma te servia.


Na frente da casa, descendo em direção à estrada interna, foram feitos três ou quatro terreiros para secagem de café. Nos fundos, atrás da cozinha, foi construída uma área de apoio externa, com pia, fogão à lenha, estas facilidades. Era lá que se matavam os animais que seriam consumidos em alguma refeição festiva. Quando o bicho da vez era algum leitão era uma gritaria danada, quem já viu sabe do que estou falando, uma coisa meio selvagem. Acho que se meus netos vissem isso nunca mais comeriam carne, a molecada de hoje me parece mais assustada que a do meu tempo. Sob a casa, um enorme porão para guardar ferramentas e utensílios agrícolas, até um gerador a diesel já que no início a energia elétrica ainda não chegava lá.


No setor agro-pastoril o homem de La Mancha jogou em todas as frentes. Café, laranjas, gado, porcos, galinhas, um lago especialmente construído para criação de carpas, uma obra para aproveitar uma fonte de água mineral, que chamávamos de biquinha, com um sistema de captação e um pequeno tanque no qual nadávamos eventualmente, numa água gelada para cacete. Andando por lá era possível sentir-se aromas variados, do café, da cana, das laranjas e das diversas espécies de bosta, bovina, eqüina, suína ou galinácea, que eram produzidas por lá. E de onde vinha o dinheiro para tudo isso? Da Mecânica Aguilar, é claro, a única fonte de renda da família. Meu avô ganhou, meu avô estava gastando, afinal a verba era dele mesmo. Ou não. Estes gastos sempre foram motivo para muitas discussões que varavam a madrugada, entre Seu Aguilar e seus filhos. Meu pai tinha uma vocação especial em arrumar os maiores arranca-rabos com o pai dele. Menino atrevido.

A fazenda foi ficando boa e a grana foi acabando, a receita de vendas nem chegava perto dos gastos, sempre muito maiores. Até porque muito do que era produzido era dado aos familiares e amigos, quase uma multidão. Então, havia verba, mas não havia dinheiro, como disse o político mineiro, e começaram os papagaios. Não aquelas aves coloridas e barulhentas, nem aqueles brinquedos de papel e varetas de bambu que as crianças soltam no vento, aqueles mais selvagens, que os gerentes de banco mantêm engaiolados e soltam de vez em quando para pegar os incautos. São papagaios carnívoros. E a fábrica começou a sofrer as conseqüências.

Um lembrete importante: Estas são memórias de quando eu tinha entre dez e quinze ou dezesseis anos, não são confiáveis, portanto. Não entendia o que ouvia, não era capaz de fazer um julgamento razoável, então nada de conclusões precipitadas pessoal, afinal são passados mais de cinquenta anos, muito tempo. Outra consideração: Naquela época, Seu Aguilar teria, mais ou menos, a idade que tenho hoje e me parecia muito velho. Será que meus netos pensam o mesmo a meu respeito?

No próximo episódio desta sensacional saga, as aventuras, desventuras, ocorrências, lendas e traquinagens que fazíamos na Fazenda Pedra Branca, município de Itu, São Paulo, Brasil. Não percam.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Fazenda Pedra Branca - Prólogo.

Meu avô paterno, vô Pepe, foi um homem bem sucedido. Deve ter chegado ao Brasil entre 1910 e 1915, com uma mão na frente, outra atrás, uma mulher com uma filha pequena no colo, sem dinheiro, depois de chacoalhar numa terceira classe de um vapor por um mês ou mais. Não conheço detalhes de sua trajetória, nunca me contaram, mas sei que depois de algum tempo iniciou uma fábrica de máquinas, não sei se já havia trabalhado com isso na Espanha ou se aprendeu a profissão por aqui mesmo. A primeira Mecânica Aguilar foi na Rua do Lucas, no Brás. Pulando a parte que eu teria que inventar, por absoluto desconhecimento, chegamos à Rua do Gasômetro. Meu avô construiu uma bela área para a fábrica, mais de 1.000 m², com a casa da família no andar de cima. A casa tinha cinco quartos, duas salas, copa e cozinha gigantes, dois quintais, era enorme. E só tinha um banheiro, imenso, mas único. A construção foi muito bem feita, materiais e acabamento ótimos, uma beleza.


O tempo foi passando, meu avô foi trabalhando enquanto minha avó tinha filhos, dez no total. Durante a segunda guerra o mercado ficou favorável aos industriais locais e Don Pepe ganhou uma grana. Começou a construção de uma grande siderúrgica no Ipiranga, que já estava quase pronta quando a guerra acabou e o mercado virou, com os americanos despejando produtos siderúrgicos nesta América Latina a preço de banana. Vendeu sua parte, parece que tinha sócios, na tal siderúrgica para a Mannesmann, e foi ai que surgiu a Fazenda Pedra Branca, que entrou como parte de pagamento no negócio.



Fica quieto, peste!

Com cento e cinquenta alqueires, a Pedra Branca era em Itu, a cidade dos exageros. Isto deve ter sido por volta de 1954 ou 1955, pois quando lá fui pela primeira vez, com meu pai, eu teria perto de 10 anos. Chegamos no fim da tarde, não havia luz elétrica, não havia ainda a casa principal, só umas casas de colonos, bastante precárias, um frio de cacete, chovia, só eu e meu pai, aquela solidão. Chorei escondido, à noite.  Quando amanheceu a coisa começou a ficar melhor, mais divertida. Não sei bem quantos, mas havia alguns colonos com funções variadas, cuidando das coisas. Lembro-me bem de um tal Arnoldo, um cara grandão, com um monte de filhos, que cuidava dos animais, e que era bem simpático. Deve ter percebido que eu estava assustado e quis me tranqüilizar. Meu pai animou-se e pediu que encilhassem dois cavalos, um para ele e um para mim. Como assim?! Nunca andei a cavalo, não tenho a menor idéia de como se faz isso, fosse uma bicicleta, mas um cavalo? Fácil, explica meu pai – que era um bom cavaleiro, senta na sela, segura as rédeas juntas numa mão só, se quiser virar puxe a rédea do lado para o qual você quer ir, se quiser parar puxe as duas juntas, suavemente para não assustar o bicho, que pode empinar. Empinar?! Não subo nesta merda de jeito nenhum! Vamos lá, você vai gostar. Fui e não gostei, quase me borrei de medo nesta minha primeira experiência eqüestre. O cavalo estava vivo, virava a cabeça tentando me morder, não me obedecia nem a pau. Eu virava a tal rédea para um lado e o puto ia para o outro, queria parar e ele desembestava a correr, queria andar e ele não saia do lugar, tinha vontade própria o danado. Mais tarde acabei me tornando um razoável cavaleiro, com alguma habilidade na condução destes animais temperamentais, mas a primeira experiência foi um pouco assustadora.

Acho que vou parar, por hoje. As lembranças da Fazenda Pedra Branca são muitas e isto aqui é um Blog e não um romance. Na próxima postagem continuarei a partir daqui. Isto se eu não esquecer e mudar de assunto, é claro. Até mais.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Cadê a Silvia?!

A coisa sempre foi meio confusa mesmo. Para sairmos de casa era um tango, como dizia um antigo chefe, querendo referir-se a algo dramático e complicado. Muitos filhos, idades e necessidades variadas, qualquer passeio virava uma pequena batalha doméstica. Para ajudar, o Sr. Raphael costumava ser o feliz proprietário dos piores carros já fabricados, maltratados por problemas que iam da parte mecânica, parte hidráulica, parte elétrica, sem esquecer a frequente falta de algum documento. Studebakers, Nashs, Buicks, Oldsmobiles, Cadillacs e outras belezas. Além disso, meu pai era o chamado “pau de enxurrada”, enroscava tanto para ir de lugar a outro que para viajar uns 80 quilômetros demorávamos umas quatro horas, se não houvesse trânsito.


Naquele dia não foi diferente. O Studebaker acabara de sair tinindo de mais um conserto, de uma oficina cujo dono adorava meu pai. Claro, porra! A grana que ganhava com aquele carro dos infernos daria para o mecânico viver como um príncipe. Tanque cheio, carro lavado, tudo certinho, a família se aboleta na viatura e parte para Santos, destino frequente em nossos passeios. Creio que minha tia Dora ainda não morava lá, então acho que iríamos encher o saco de meus tios José e Conceição e de suas filhas Clara e Suely, o Tuca ainda não havia nascido. Já imaginou você na tranqüilidade de seu apartamento de frente para o mar, pequeno, mas suficiente para sua família e chegam, de repente, cunhado, cunhada e quatro sobrinhos pequenos? Um filme de terror.


Olha o danado ai.

Mas antes Raphão tinha que dar uma passada na Oficina para ver uma coisinha. Oficina era como chamávamos a fábrica de maquinas de meu avô, na Rua do Gasômetro, e onde meu pai e seus irmãos trabalhavam. Tinha que acertar alguma coisa com alguém, sempre tinha. Meus avós moravam na boa casa que havia no andar de cima da fábrica, grande e espaçosa, construída por Don Pepe para abrigar sua imensa família. Subimos, pois, minha mãe e a piolhada, para aguardar meu pai que, já, já, viria para nos levar ao tal passeio. Enquanto esperávamos, cada um foi fazer alguma coisa. Comer um petisco, olhar os cachorros, jogar bola no quintal, estas coisas que as crianças fazem com tanta desenvoltura, cada um a para um lado.

Você veio logo? Nem ele. Depois de muito tempo chega apressado e nervosinho, acho que com medo da bronca que poderia levar de minha mãe, e comanda: “Vamos, vamos, se não vamos chegar muito tarde a Santos”. Junta a tralha da molecada, mais alguns lanchinhos, umas bobagens que minha avó nos dava, afinal ninguém é de ferro, e zarpamos. Não havia ainda a Imigrantes, então o caminho era: Rua do Gasômetro, av. do Estado, av. Dom Pedro, av. Nazaré, e íamos pelo Sacomã até chegarmos na Anchieta. Então alguém se lembrou de dar uma conferida: Mauricio – aqui, Silvia – nada, Mirinha – aqui, Faelito, que é como chamávamos meu irmão Raphael, - aqui. A ausência de resposta da Silvia chamou atenção, e foi repetida: Silvia – nada! Ela não havia embarcado, tinha ficado na casa de meus avós não sei fazendo o que, distraída talvez com alguma de minhas tias e a Silvia sempre foi meio desligada. É até hoje. Toca voltar para buscar a pimpolha, que nem tinha percebido nada. Acho que naquele dia levamos umas dez horas para ir do bairro do Belém até Santos. De longe pode parecer engraçado, mas na hora foi a maior crise.  

sábado, 26 de julho de 2014

Aguilarices Raphaélicas.

Quando não se tem muito o que fazer, fica-se pensando besteira e lembrando coisas do passado, talvez com alguma contribuição criativa no meio. Então lá vai.

Pedagogia:

Rubem Alves, Paulo Freire, Piaget, Summer Hill que me desculpem, mas método eficaz de verdade na educação infantil era o do Sr. Raphael. Trata-se mais de um conceito do que de um método, muito mais simples e por isso mesmo muito mais fácil e rápido de aplicar. Imagine que algumas crianças estejam brincando em um aposento, sozinhas, enquanto os adultos estão em outro local. Inevitavelmente, ao menos na minha família, uma das crianças vai começar a chorar e a reclamar do outro ou outros. Meus irmãos eram especialistas nisso e meus netos não fogem à regra. Meu pai, calmamente (mentira!), dirigia-se ao local do incidente e aplicava as agora proibidas palmadas em todos, estivessem ou não envolvidos no fato. Acredito que pela dificuldade de apurar a veracidade das versões e pelo susto que havia tomado distribuía uma justiça discutível, mas igualitária. Seria ele um socialista? Outro dia, aqui em casa, passei por situação semelhante com meus netos que brincavam no quarto, estando eu na sala. Henrique começa a chorar e a dizer que o irmão, Vitor, havia lhe dado uns tabefes. A prima Naná, também presente, observava. Chego e, após as broncas iniciais, digo a eles que vou lhes explicar o novo processo educacional que adotarei daqui em diante e detalho o procedimento de meu pai. Naná questiona: “Mas vô, e quem não tiver nada com isso?”. Quando lhe digo que mesmo os presumivelmente inocentes entrarão na dança ela me olha com surpresa e resmunga: “Mas não é justo!”. Concordo com ela, mas reitero, não é justo mas é assim que vai ser. E saio do quarto, triunfante. Não acredito que vá funcionar por muito tempo, mas ao
menos naquele fim de dia as coisas ficaram mais calmas. Nem precisei usar as palmadas, a explicação bastou.

O Cesto das Meias.

A casa dos meus pais sempre foi uma bagunça. Não me entendam mal, não estou reclamando, éramos muitos, a confusão era grande, horários diferentes, necessidades variadas, não havia como ser de outra forma. Mas que, às vezes, a coisa era punk lá isso era. Quando morávamos na Rua Ouro Branco, travessa da Rua Estados Unidos, havia um cesto de vime que ficava, não me perguntem a razão, no quarto dos meus pais. As meias, depois de lavadas, eram depositadas, sem nenhuma classificação ou separação, neste intrigante recipiente. Durante algum tempo eu era o que acordava mais cedo, horário da faculdade, distância da escola, sei lá, e após o banho precisava de meias. Entrava, pé ante pé, no quarto deles, que ainda dormiam, não acendia a luz, pescava duas meias do tal cesto e saia sem fazer barulho. Na maioria das vezes pegava só duas, mas em algumas ocasiões pegava mais de duas para aumentar minhas probabilidades de acerto. Se você tivesse sorte, as meias seriam semelhantes, se tivesse muita sorte seriam da mesma cor, e se estivesse pronto para ganhar na loteria seriam do mesmo par. Fui para a escola com meias descasadas diversas vezes, só ocasionalmente acertei no duque.

Terapêutica Curativa.

Na casa dos meus pais havia alguns processos de complementação terapêutica que eram adotados em caso de doença. Consulta médica, remédios, até ai tudo normal. O primeiro método complementar era brigar com o doente. Isso mesmo, alguém ali acreditava que brigando com o enfermo ele ou ela deixaria de bobagem e melhoraria logo. Nunca funcionou, lógico, não fazia o menor sentido. O outro era o milagroso suco de laranja adotado por Dona Delmira. Pressão alta? Suco de laranja. Pressão baixa? Suco de laranja. Dor de barriga? Suco de laranja. Ressaca? Suco de laranja. Era um elixir milagroso, curava tudo. Não sei se ajudou muito, mas ao menos mal não fez. Além disso, durante algum tempo o Sr. Raphael adotou a dieta do ovo cru matinal como processo preventivo de doenças variadas. Pegava o elemento e o obrigava a tomar uma gema de ovo crua, salpicada com um pouco de sal e colocada em uma colher de sopa, como se fosse uma dose de remédio. Era bom neguinho não estourar a danada na boca e engolir direto como se fosse uma ostra. Quando a gema se rompia a coisa ficava brava.


Bons tempos aqueles, tenho saudades.

Foto de Maio de 1964, Dia das Mães, quando Dona Delmira foi homenageada com o título de Mãe do Ano em uma escola do bairro. Merecidamente.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

A Barata no banheiro.

Numa noite destas, em uma de minhas muitas excursões ao banheiro para mijar, coisas da idade, deparei-me com ela. Ao acender a luz vi a enorme barata pousada numa parede, me olhando. Já estava preparando meu chinelo exterminador quando ouço dentro da minha cabeça: Não, não, não me mate, preciso falar com você! Pensei na hora: Agora fodeu, enlouqueci de vez. Estou até escutando uma barata falante. Falante não, pior, telepata. Ela insiste: Você não está louco, eu estou falando mesmo. Uso telepatia pois não tenho os instrumentos necessários para falar como os humanos fazem e então desenvolvi recursos mais avançados. Ouça com atenção, por favor.

Resolvi dar corda ao repugnante inseto e mandei, em pensamento para que minha mulher não acordasse e, me ouvindo falar sozinho no banheiro, me internasse de vez: Então telepate, o que você quer de mim? Como não perguntei se era uma barata ou um barato, tratá-la-ei aqui como sendo do sexo feminino e portanto uma barata. Veja bem, disse ela, estou aqui numa importante missão de esclarecimento e escolhi você para este primeiro contato verbal, digamos assim, com os humanos. Tive que me conter para não chinelar a miserável ao ouvir o tal veja bem, mas consegui e pedi que continuasse.

Lembra-se que na Copa de 2010 havia o polvo Paul, que fazia previsões sobre os resultados dos jogos e acertava tudo? Então, com a morte do pobre octópode nós baratas resolvemos assumir esta tarefa e faremos previsões ainda mais exatas já que somos mais desenvolvidas que os polvos. Estamos na Terra já mais tempo que quase todas as espécies e continuaremos aqui após a extinção delas todas, inclusive da vossa. Assumimos este desafio simples, das adivinhações futebolísticas, para ganhar credibilidade, passando depois para coisas mais importantes. Posso dizer quis são nossas previsões?

Diga, pensei eu, quais serão os finalistas e que time será o campeão desta que alguns chamam de Copa das Copas? Você ficará surpreso, pensa ela, mas a final será entre Grécia e Argélia e a Grécia vencerá nos pênaltis, após jogo e prorrogação terminarem sem gols. Não pode ser, exclamo telepaticamente, a Grécia?! Não ganham nada desde a Guerra de Tróia, aquela do cavalo, e olha que já faz tempo. Pois é, pensa ela, nós também nos surpreendemos, esperávamos um resultado mais normal, com Alemanha, Argentina ou Brasil em primeiro. Mas fazer o quê? O Conselho das Baratas definiu como exata a previsão que te passei. E agora, faço o que, pensei? Divulgo isso? Ninguém vai acreditar e vou passar por maluco, o que não é improvável já que falo com uma barata neste momento.

Ela continua: vamos fazer o seguinte, você não me mata hoje e após o jogo entre Grécia e Costa Rica conversaremos novamente. Como estou segura de minha previsão, acho que você passará a me olhar com outros olhos. Tentei pensar sem que ela me ouvisse, mas como esconder pensamentos de um telepata? Posso fazer duas perguntas? Ela concorda, confiante.

Primeira, como a Grécia vai passar pela Holanda?
Segunda, como é seu nome, se é que você tem um?

Fácil, diz ela, A Grécia vencerá a Holanda por 1 X 0, gol de Robben e meu nome é Samsa. Está de sacanagem comigo? O Robben joga na Holanda e Samsa é o nome de Gregor Samsa, o personagem de Metamorfose de Kafka, que vira inseto no início daquela obra-prima literária. Ela ri e contra ataca, gol contra, é claro. E escolhi este nome pois achei uma fina ironia com vocês. Tudo bem, digo eu, vamos nos encontrar aqui depois de Grécia X Costa Rica. Ela concordou e nos despedimos.

Na última madrugada, na mijada das 3.45 - horário de Brasília - ela estava no mesmo lugar.

E ai, pergunto eu, o que foi que deu errado? Ela, sem jeito, explica: A culpa foi do meu celular. Recebi a previsão por Whatsup e a porra do aplicativo comeu algumas palavras. Fiquei com a impressão que a Grécia venceria, mas na verdade a vencedora seria Costa Rica. Mas o resto não muda, a Costa Rica vai ganhar a copa. Sei, sei, pensei. E dei-lhe uma puta chinelada, esmagando o maldito inseto contra o azulejo. Depois de limpar aquele creme nojento, voltei para a cama. Não se pode confiar nestas baratas, ainda mais as irônicas. Kafka!? Era o que me faltava, uma barata pedante! 

segunda-feira, 16 de junho de 2014

A Coisa!

Não sei bem quando a coisa começou, mas já faz algum tempo. Começou devagar, com uma proteção às baleias aqui, um salve os golfinhos ali, um preserve a natureza acolá, parecia uma coisa ingênua. Mas a coisa foi crescendo, passou a observar nosso comportamento, nossos preconceitos, nossa falta de educação, nossas preferências políticas, nossos hábitos.

Foram criadas organizações para cuidar de todas as coisas, com várias especializações. Algumas foram chamadas de ONGs, em princípio independentes de governos, que depois vieram a mamar verbas públicas, mostrando que não são tão não governamentais assim. Depois os próprios governos, entendendo-se aqui os partidos que estão com a mão no cofre no momento, que vendo as oportunidades que se apresentavam começaram a criar coisas governamentais, era uma mina de ouro. E as coisas começaram a criar regras para todos nós. Teus preconceitos são péssimos, reacionários, conservadores, fadados aos infernos. Preconceitos bons são aqueles apregoados pelas coisas, pois na verdade o que as coisas propõem são trocas de preconceitos. Os deles são bons, os outros são maus. Se você tem uma opinião diferente, a coisa vai te pegar.

Você fuma? Vício execrável! A coisa condena com todas as forças, te põe pra fora de restaurantes e locais públicos, logo, logo, a coisa ficará feia até para quem fuma na rua. A menos que você fume maconha. Ai a coisa é diferente. Várias coisas são a favor da maconha, desde coisas medicinais, coisas recreativas, até coisas que tratam das liberdades civis, o que quer que seja isso. Marchas e contramarchas a favor da cannabis sativa, com interdição de avenidas, fechamento de universidades, uma farra. Você bebe? Ai a coisa é relativa. Se você é um expert em vinhos ou em cervejas importadas e diferentes, tudo bem, a coisa flui bem. Mas se você é um pé-de-cana que gosta de tomar um esquenta-guela qualquer na padaria ou no boteco da esquina a coisa pega pro seu lado. Melhor esquecer seu repertório de piadas, na certa cheio de preconceitos étnicos, sexuais, geográficos, e que desrespeita minorias diversas.  

Você xinga políticos com palavras de baixo calão, seja em cerimônias públicas, seja em reuniões privadas ou, pior ainda, através das ditas redes sociais? Ai depende. Se você for membro ou simpatizante da coisa certa, governamental ou não, então pode. Estamos cansados de ver exemplos de celebridades da política nacional que fazem isso com desenvoltura. Mas se você pertencer a alguma categoria que a coisa não goste, ai não pode. A coisa está tão complicada que até escritores que morreram há muito tempo, com obras importantes, não estão agradando. Há quem proponha que seus livros sejam reescritos ou, pior, sejam queimados em praça pública para mostrar que agora a coisa é outra. Não importa o contexto em que as obras tenham sido produzidas, a coisa parece não saber o que é contexto. Algumas organizações, patrocinadas por coisas misteriosas, estão alertas para problemas de desrespeito aos direitos humanos, mesmo que cometidos na época do Império Romano ou até antes. Agora, se a coisa gosta de alguma linha de pensamento, ela será incentivada e exaltada mesmo que nunca tenha dado certo em lugar nenhum, talvez por sabotagem daqueles que são contrários à coisa certa.

A coisa está brava, cuidado!

terça-feira, 13 de maio de 2014

Alô!

- Alô!
- Alô, boa tarde, quem está falando?
- Quer falar com quem, minha filha?
- Deixe ver, quero falar com o Sr. Maurílio Avelar.
- Aqui não tem ninguém com este nome, até logo.
- Um minuto, não é Maurílio, é Mauricio. Sr Maurício Avelar.
- Também não tem ninguém com este nome, meu bem. Até logo.
- Mais um minuto, por favor, estou vendo melhor e é Mauricio Aguiar.
- Sou eu mesmo, pode falar. (Ia esclarecer que é Aguilar, mas achei perda de tempo).
- Sr Mauricio, tudo bem? Ótimo (antes que eu respondesse qualquer coisa).
- Pois não, qual é o assunto?
- Sr Mauricio, o senhor tem recebido nosso jornal “A Desgraça Impressa”?
- Não tenho recebido e nem quero, até logo.
- Mas Sr Mauricio, nosso jornal está com uma promoção especial para o seu bairro, e a assinatura está custando somente R$ x,xx por mês, e o primeiro é grátis. O senhor não quer aproveitar?
- Não leio jornais, nem o seu nem nenhum outro. Não tenho interesse, até logo.
- Mas o senhor não lê jornais? E como fica informado das coisas que acontecem?
- Escuto rádio, minha filha, e desde as seis horas da manhã ficam repetindo as mesmas coisas até a porra do Jornal Nacional, às nove e meia da noite. Devo escutar estas repetições umas dez vezes por dia. Não quero jornal nenhum, tchau.
- Mas o nosso é diferente, as reportagens são melhores, resumidas, facilitando a leitura.
- Eu sou medianamente alfabetizado, querida, não me importo de ler. Mas só leio o que quero, e eu não quero ler seu jornal. Está claro?
- Mas o desconto é ótimo, mais de 50% sobre o preço de banca.
- Sabe quanto eu gasto hoje com jornais? Nada! E vai continuar assim.
- Mas...
- Meu bem, vamos encerrar por aqui, não vamos chegar a lugar nenhum. Até logo, boa tarde.
- Até logo, nosso jornal agradece a atenção.
- Até logo.

sábado, 19 de abril de 2014

PB do C.

Estou no computador, vaga bundando na internet, quando entra uma chamada pelo Skype. É meu cachorro, Seu Bosta, ligando da Bélgica. Talvez eu não tenha comentado com vocês, mas SB foi fazer uma pós-graduação na Bélgica, acreditem. Andava prá lá e prá cá, carregando uma papelada enorme e me perguntando coisas difíceis de responder – conheceu meu pai? quantos irmãos eu tive? eram parecidos comigo? algum deles era loiro e alto? eu estava achando que aquela conversa não ia acabar bem. Dito e feito. Um belo dia o alucinado entra em casa e manda – consegui o passaporte Belga e vou fazer pós-graduação em Linguagens Caninas Avançadas na Universidade de Charleroi, já ouviu falar? Nem sabia que existia esta cidade, quanto mais uma universidade. Quanto tempo vai ficar? Deve levar uns dois ou três anos, isto se eu não resolver ficar para sempre. Como você conseguiu este passaporte, SB, por acaso comprou um falsificado? Sabe que isto é encrenca na certa. Que falsificado, cara, pensa que sou trouxa! Usei minha documentação genealógica e demonstrei que tenho um tataravô que era Pastor Belga legítimo, daí a obter a cidadania foi um pulo. Você sempre dizia que eu sou vira-lata, então fui pesquisar. Tenho antepassados da França, da Inglaterra, da Alemanha, da Bélgica, de Portugal, da Itália, até da Austrália. Poderia ter obtido o passaporte de qualquer destes países, escolhi a Bélgica. Por quê? Parece que a cerveja é melhor. E como você vai se sustentar? Ganhei a passagem e uma bolsa do PB do C, de € 2.000 por mês. Não é muito, mas deve dar. Você quis dizer PC do B, não é? Não é, você acha que tenho focinho de comunista? É PB do C mesmo, Partido Brasileiro dos Canídeos, uma nova organização política que vai mudar muita coisa por ai. Mas você não fala Francês, nem Alemão e muito menos Holandês, como vai se virar? Esqueceu que sou cachorro? Falo Latir, como todos nós, isto não vai ser problema. Tchau. E foi, lá se vão uns seis meses.


Atendo a ligação e pergunto, o que é esta garrafa de Stella Artois aí do seu lado? Estamos tomando uma cerveja, diz ele. Começamos com uma Duvel mas agora passamos para a Stella, mais suave. Cachorro pedante! Não tem aula hoje? Claro que tem, mas quem disse que a presença é obrigatória? Aqui é Europa, meu amigo, não este cafundó onde você vive. Então, você ligou só para se exibir ou quer alguma coisa? É que tenho um colega de classe, um Cão D’Água Português, e descobrimos que é um primo distante. Como haverá um período de duas semanas sem aulas, aniversário da Rainha, da cidade, da universidade, não sei bem, ele me convidou para irmos a uma Quinta que a família dele tem em Trás Dos Montes, diz que é muito bonito por lá. É a terra da minha mãe, você sabe. Eu sei, por isso mesmo quero conhecer, sua mãe era muito legal. Entendia muito mais de cachorro que você, se me perdoa a verdade. Sei disso, entendia mesmo. Então, e como sabes o interior de Portugal não é lá um exemplo de modernidade tecnológica, então talvez eu fique sem internet. Te ligo na volta, tchau. Tchau, cuidado, um beijo nos parentes que achar. Cachorro sortudo!

sábado, 15 de março de 2014

Labirintos.

- Robert Redford!
- O que aconteceu com ele, morreu?
- Que morreu, que nada. Ele é o ator que trabalha com aquela baixinha nariguda que canta “People” naquele filme velho que vimos outro dia.
- Barbra Streisand. Mas eu gosto mais de “People” com o Ray Charles.
- Você sempre prefere a versão do Ray Charles, mesmo de músicas que ele nunca gravou. Lembra da famosa “Here comes the Sun” com ele que você nunca acha? Então. Mas você está de novo desviando a conversa, que mania. Lembra outro dia em que víamos um filme e não conseguimos lembrar o nome do ator? Robert Redford.
- Tenho certeza que já ouvi “Here comes the Sun” com o Ray Charles, só não lembro onde. Mas vimos este filme faz mais de uma semana, agora é que você foi lembrar? E o nome do filme, lembrou?
- Ai já é querer demais, nunca vou conseguir lembrar isto.

Parece comédia, mas é a reprodução de uma conversa comum de um casal já não tão jovem. As memórias são fugidias e costumam aparecer muito tempo depois da tentativa de lembrar-se de alguma coisa. Você está quieto no seu canto e de repente seu cérebro manda: Rivotril; Rua Redenção; Gary Cooper; Wilson Simonal; Quinua; Carlos Augusto; Mustang Hatchback 68; Jeanne Moreau; coisas que te assustam, pois não estava pensando em nada daquilo. Quando vai ver é a resposta a uma pergunta feita ao seu miolo já há muitos dias. Parece engraçado, mas não é. É assustador.

A Iluminista FGV não oferecia ao seu corpo discente aulas de Neurofisiologia Aplicada, Estruturas Cerebrais Difusas, coisas assim, nem como opcionais. Por isso mesmo, minhas opiniões a respeito do funcionamento do cérebro e adjacências não passam de palpites mal-ajambrados.

Minha teoria é que com o passar do tempo, minúsculos organismos maléficos (micróbios, vírus, bactérias, estas merdinhas) vão cavando túneis microscópicos no seu cérebro até formar um intrincado conjunto de caminhos, becos sem saída, retornos proibidos, curvas abruptas, despenhadeiros fatais. Os neurônios, curiosos por natureza, vão entrando por estes buraquinhos e se perdem, tendo muita dificuldade para voltar aos seus lugares de origem. Com isto, o neurônio responsável por alguma informação não consegue passá-la para o Departamento de Lembranças no momento da solicitação. Não é que você não saiba, o neurônio é que está perdido no labirinto dos tais túneis. Quando consegue voltar ele manda a mensagem, mesmo que alguns dias depois. Isto costuma causar muita surpresa. Sei que a hipótese é absurda, mas é bem legal, já imaginaram?

Semanas depois sou despertado por uma misteriosa voz além-túnel:

- The way we were - Nosso amor de ontem.


Era o nome do maldito filme. Ia acordar minha mulher para dizer que tinha lembrado, mas achei melhor não. Ela poderia me matar e alegar legítima defesa de sua sanidade mental. Qualquer juiz daria razão a ela. Vou contar de manhã. Se eu lembrar, é claro.