No Gênesis o início foi o Verbo. Na Pedra Branca o
início foi a verba. Após tomar posse da propriedade, Seu Aguilar, como meu avô
era chamado, começou um ciclo de obras, reformas, plantios, criações,
construção de lagos e de tanques, abertura de estradas internas, parecia um
imperador romano levando a civilização a algum cafundó dos Judas perdido na
barbárie. Já existiam benfeitorias e construções, mas faltava muita coisa. Não
havia uma casa principal para a família, só casas de colonos. Ele construiu uma
grande sede, com cinco quartos e um banheiro, gostava desta proporção, no alto
de uma elevação que havia após um paiol na parte central da área. A casa tinha
uma enorme varanda na frente, com uma belíssima vista panorâmica. Além da parte
social, existiam diversos quartos de apoio aonde eram guardadas tranqueiras
diversas, incluindo um espantoso quartinho das botas, com dezenas de pares, com
numeração variada, que ficavam à disposição dos interessados. Precisasse de uma
bota era só ir até lá e ver se alguma te servia.
Na frente da casa, descendo em direção à estrada
interna, foram feitos três ou quatro terreiros para secagem de café. Nos
fundos, atrás da cozinha, foi construída uma área de apoio externa, com pia,
fogão à lenha, estas facilidades. Era lá que se matavam os animais que seriam
consumidos em alguma refeição festiva. Quando o bicho da vez era algum leitão
era uma gritaria danada, quem já viu sabe do que estou falando, uma coisa meio
selvagem. Acho que se meus netos vissem isso nunca mais comeriam carne, a
molecada de hoje me parece mais assustada que a do meu tempo. Sob a casa, um
enorme porão para guardar ferramentas e utensílios agrícolas, até um gerador a
diesel já que no início a energia elétrica ainda não chegava lá.
No setor agro-pastoril o homem de La Mancha jogou em
todas as frentes. Café, laranjas, gado, porcos, galinhas, um lago especialmente
construído para criação de carpas, uma obra para aproveitar uma fonte de água
mineral, que chamávamos de biquinha, com um sistema de captação e um pequeno
tanque no qual nadávamos eventualmente, numa água gelada para cacete. Andando
por lá era possível sentir-se aromas variados, do café, da cana, das laranjas e
das diversas espécies de bosta, bovina, eqüina, suína ou galinácea, que eram
produzidas por lá. E de onde vinha o dinheiro para tudo isso? Da Mecânica
Aguilar, é claro, a única fonte de renda da família. Meu avô ganhou, meu avô
estava gastando, afinal a verba era dele mesmo. Ou não. Estes gastos sempre
foram motivo para muitas discussões que varavam a madrugada, entre Seu Aguilar
e seus filhos. Meu pai tinha uma vocação especial em arrumar os maiores
arranca-rabos com o pai dele. Menino atrevido.
A fazenda foi ficando boa e a grana foi acabando, a
receita de vendas nem chegava perto dos gastos, sempre muito maiores. Até
porque muito do que era produzido era dado aos familiares e amigos, quase uma
multidão. Então, havia verba, mas não havia dinheiro, como disse o político
mineiro, e começaram os papagaios. Não aquelas aves coloridas e barulhentas,
nem aqueles brinquedos de papel e varetas de bambu que as crianças soltam no
vento, aqueles mais selvagens, que os gerentes de banco mantêm engaiolados e
soltam de vez em quando para pegar os incautos. São papagaios carnívoros. E a
fábrica começou a sofrer as conseqüências.
Um lembrete importante: Estas são memórias de quando
eu tinha entre dez e quinze ou dezesseis anos, não são confiáveis, portanto.
Não entendia o que ouvia, não era capaz de fazer um julgamento razoável, então
nada de conclusões precipitadas pessoal, afinal são passados mais de cinquenta
anos, muito tempo. Outra consideração: Naquela época, Seu Aguilar teria, mais
ou menos, a idade que tenho hoje e me parecia muito velho. Será que meus netos
pensam o mesmo a meu respeito?
No
próximo episódio desta sensacional saga, as aventuras, desventuras,
ocorrências, lendas e traquinagens que fazíamos na Fazenda Pedra Branca,
município de Itu, São Paulo, Brasil. Não percam.
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