Meu irmão
Raphael morreu ontem, 25 de outubro de 2016. Quase dois anos lutando com uma
doença fatal e ele perdeu esta luta. Estou triste pra caralho. Na verdade já
estou muito triste desde maio, quando ele teve o que se achou, de início, que
fosse um AVC, e depois se constatou que era uma metástase do câncer de
intestino que havia operado há um ano e meio, mais ou menos, desta vez no
cérebro. Nova operação, muito pior, sequelas, radioterapia, ele já parecia
vislumbrar o que estava para vir. Na convalescência desta segunda operação ele
ficou uns dois meses na casa de minha irmã Mirinha e de meu cunhado Marco
Antonio, que cuidaram dele de maneira carinhosa e dedicada, e eu o visitava
todos os dias para conversarmos. Nestas conversas ele demonstrava grande
preocupação com o que estava por vir, para ele e para seus filhos. Eu tentava,
de todas as formas, amenizar a situação com brincadeiras e uma conversinha
mole, tentando não deixar que ele percebesse minha preocupação, mas acho que
não deu muito certo. Do final de setembro para cá ele começou a piorar com
novos sintomas e dificuldades. Exames comprovaram o retorno dos tumores,
inoperáveis, e de lá pra cá foi declinando rapidamente, até acabar.
Alguém pode
dizer que ele não era meu único irmão, e é verdade. Mas tem um negócio
interessante na minha cabeça, vê ai. Dona Delmira e Seu Raphael tiveram sete
filhos, divididos em dois blocos. No primeiro bloco, eu, a Silvia, a Mirinha e
o Raphael. No segundo bloco, com um intervalo de sete anos, o Ricardo, o
Alexandre e o Marcelo. Para mim, meus irmãos são os do primeiro bloco, os do
segundo são como se fossem meus filhos. A diferença de idade que tenho para os
três últimos é grande, treze anos com o Ricardo, quinze com o Alexandre e
dezoito com o Marcelo. Tanto assim que fui eu que levei minha mãe ao hospital
para ter o Marcelo. Meu pai, ao sair para o trabalho, deixou o carro comigo
para alguma emergência e ai, pimba, Marcelo resolveu nascer. Eu já era devidamente
habilitado e levei Dona Delmira para a maternidade, uma experiência inusitada,
levar a própria mãe para ter um filho.
Irmão é
aquele cara com quem você brinca e com quem você briga. É aquele que rouba seu
brinquedo e de quem você pega aquele brinquedo que ele mais gosta. Irmão é
aquele cara que num dia você ama com todas as suas forças, e no outro você quer
matar o desgraçado. Estas emoções, ao menos para mim, foram maiores com os do
primeiro bloco. Já os do segundo, que amo da mesma forma, eu levava pra escola,
ao barbeiro, para passear, coisas assim meio paternais, dá pra entender?
E quando
morre alguma pessoa muito próxima, como o Raphael era para mim, parte de você
também morre. Memórias que só vocês dividiam, histórias do que viveram juntos,
tudo isso desaparece. E eu e o Faelito, um dos apelidos que ele teve, vivemos
muita coisa juntos. Ele me seguiu em muitas coisas. Na turma que eu frequentava,
a Turma do Palacete, ele fez parte da segunda geração. Até meu apelido, Magrão,
ele herdou, apesar de nem ele nem eu fazermos mais jus a tal alcunha. Passou o
diabo nos últimos dez anos. Sua mulher, Rosana, sofreu horrores com uma doença
degenerativa que a maltratou por mais de oito anos até leva-la definitivamente.
E quem cuidou dela foram meu irmão e seus filhos, com todo o sofrimento que
isso representa. Pouco depois do falecimento de Rosana, quando se achava que
haveria um pouco de normalidade na vida, surge o câncer de intestino. O resto
eu já comentei. Sei que não é disso que se trata, mas o Ito (diminutivo de Faelito)
não merecia tudo isso.
Agora é
tocar pra frente, sem ele, sem suas lorotas, ele não vai mais tomar cerveja e
nem pinga envelhecida no corote, não vai mais fazer moqueca ou algum outro prato
que fazia tão bem, era um bom cozinheiro. Não vai mais voltar para Veneza,
cidade na qual passou pouco mais de um mês, a trabalho, e pela qual se
apaixonou, não vai mais pescar nem ficar na praia conversando com os amigos. Não
vai mais mentir dizendo: Vim de Caraguá em menos de duas horas, puta lorota.
Tudo isso virou fumaça. Ia contar aqui umas histórias dele, mas não vou, não
estou no clima. Sei que não serei o único a sentir a falta dele, mas eu
sentirei muita falta.
E o
putzgrila, onde entra? Foram as últimas palavras que ele me disse. Fui ficar um
pouco com ele no hospital, ele já quase não falava mais nada, e ao sair me
despedi com uma expressão que ele usava muito: Tchau Putzgrila. E ele repetiu,
Tchau Putzgrila. Foi só. Depois disso, nas outras visitas, nenhuma palavra. Só
penso numa frase para terminar esta conversa toda, que é a última de uma prece
irlandesa famosa e que minha irmã Silvia gosta muito:
- Até que
eu de novo te encontre, que Deus te guarde na palma da mão. Que assim seja.
Tchau meu
querido irmão, tchau Raphael, tchau Putzgrila, um beijo. Boa Viagem.