sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Da minha janela.

Da minha janela não vejo o mar, nem as montanhas, nem campos verdejantes como aqueles dos anúncios de desodorantes femininos ou de absorventes higiênicos. Vejo duas ou três arvores, a rua lá embaixo, e na frente um enorme paredão branco cheio de janelas. Rua pequena, estreita, um prédio de cada lado, o meu menor e mais baixo, o outro grande, mais de vinte andares, largo, com varandas na sala. Os apartamentos do prédio vizinho parecem bons, nunca os visitei, sala grande com varanda, três quartos e, imagino, outras dependências necessárias ao bom desempenho de suas funções. Minha vista concentra-se nas varandas e salas, já que os demais cômodos ou ficam fora do alcance de visão ou permanecem com cortinas fechadas preservando a privacidade dos moradores. E é ai que começa a viagem.

A qualquer momento que eu chegue perto da minha janela olho, queira ou não, para o prédio vizinho, não tem como evitar. E minha área de visão concentra-se naqueles apartamentos na mesma altura que o meu ou em andares próximos, abaixo ou acima. E começamos a criar enredos para os personagens desconhecidos, mas tão freqüentes, de cujas vidas partilhamos um pouco todo dia, mesmo sem querer.

Minha personagem favorita era a Maria Louca. Oitavo ou nono andar, coluna da direita. Quarenta e poucos anos, não sei se bonita ou não, nunca consegui definir. Passava os dias com janelas e cortinas fechadas, acho que dormindo, e aparecia mais para o fim da tarde. Nos finais de semana, começando na sexta-feira, é que a coisa pegava fogo. À medida que as horas iam passando ela começava a elevar o tom de voz e a aumentar o som da TV, aonde rodava interminavelmente um DVD da Ana Carolina ou outro parecido. O famoso efeito cachaça. Falava muito ao telefone, quase sempre brigando com alguém. Às vezes aparecia algum acompanhante. Havia um mais regular, que circulava pelo apartamento de cuecas vermelhas e com quem ela começava a brigar lá pelas duas da manhã, ordenando que fosse embora. Certa vez, no meio de uma discussão, ameaçou pular da varanda chegando a colocar uma perna para o lado de fora da grade de proteção. Quando a baixaria era muita, na segunda-feira seguinte aparecia um casal mais velho, cabelos brancos, e ela ficava se explicando para o homem (pai?), que só balançava a cabeça. Vendeu o apartamento para o Vovô e mudou-se, acabou a festa.

Vovô fez pequenas obras, acho que para consertar os estragos, pintou o apartamento e mudou-se. Um casal de idade e um cachorrinho. Aonde o Vovô fosse o bichinho ia atrás, estavam sempre juntos nas caminhadas pela casa. Cheguei a encontra-los na rua em algum passeio para que o animalzinho fizesse suas necessidades, suponho eu. A Vovó pouco saia do quarto, aparecendo no horário das refeições e movia-se com dificuldade. De repente o cãozinho sumiu, acho que morreu. Vovô entrou numa depressão de dar dó, não circula mais pela casa, não sai mais à rua, só o vejo na hora da sopa e olhe lá. Morro de pena, deviam ser grandes amigos.

Um ou dois andares acima do Vovô mora o Alemão. Sozinho, meia idade, calvície avançada, magro, passa os dias trabalhando em um notebook na varanda. Senta-se em uma espreguiçadeira e fica muitas horas naquele computador. Gosto de imaginar que ele fica jogando o popular game “Transferência Ilegal de Fundos para o Exterior”, mas na verdade não sei o que o bicho fica fazendo. Faz seus lanches lá mesmo e toma jarras enormes de suco (?). Às vezes aparecem alguns amigos e jogam sinuca na mesa que existe no meio da sala. Nada muito barulhento fora algumas cantorias que não entendo, provocadas pelos Schnaps.
 
Na coluna da esquerda o Comandante, sexto ou sétimo andar. Na verdade a moradia deve ser da, digamos, amiga do Comandante, já que ele aparece de vez em quando. Sessentão, elegante, grisalho nos cabelos e no bigode bem tratado. Quando ele está, o casal aparece na varanda para fumar, coisa que ela nunca faz sozinha, limitando-se a cuidar das plantas. Fumam, conversam, às vezes vão para dentro e voltam para fumar após algum tempo. O mal educado joga a bituca para baixo, acreditam? E ai ele parte, ficando dias sem aparecer, às vezes semanas.

Acima do Comandante a Sharon. Loira, aparentemente jovem, vem à varanda para fumar. Deve ser patrulhada pelos outros moradores, que não querem aquele mau cheiro lá dentro. O apelido deve-se a um certo exibicionismo, levando minha mulher a ficar de olho em mim para ver se eu não fico de olho nela (na Sharon). Bobagem. São todos muito altos na casa dela, quando fazem alguma reunião familiar é que dá para perceber.

Acho que eu prefiro vista para o mar.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Cidadanias, Civilidades e o Guarda-Roupa.

Os atletas praticantes da profissão mais antiga do mundo, aquela que começa com “P”, são responsáveis por estas lamentáveis confusões, que pretendo comentar a seguir se não perder o fio da meada. Não, meus queridos, não me refiro às Putas e sim aos Publicitários. Quando Eva foi tentada pela Serpente, com aquela conversinha de “É só $ 29,99, amiga...; É só até Sábado...; Sua vizinha já comeu duas, você vai ficar sem? ...” e inventou o Pecado Original estavam lançadas as bases da primeira profissão do planeta. Publicidade! Depois foi só criar um prêmio em forma de Leão e pronto, a profissão estava consolidada. São capazes das mais deslavadas mentiras para fazer você comprar o bagulho que querem vender. “Nosso maravilhoso plano oferece isto, aquilo, e muito mais”. Muito mais uma porra! Mesmo o que é explicitado nem sempre é fornecido, quanto mais o “Muito mais.”.

Mas já ia me perdendo, o que queria mesmo é falar do uso do que poderia ser chamado de Semântica Criativa como forma de enganar as pessoas e de criar novos e desagradáveis comportamentos. Os publicitários sempre foram muito criativos em usar a linguagem para enganar as pessoas. Carro usado vira “seminovo”, velhice vira “melhor idade” (esta é de lascar!), apartamentos onde Judas perdeu as botas viram “próximo ao Metrô Xingu”, estas merdas. Mas o auge da canalhice foi alcançado por um sub-grupo destes malditos, os especialistas em Marketing Político, a fina flor da filhadaputice! E foram criados novos significados para as palavras, normalmente associadas a um partido político, como se estes fossem os salvadores da pátria, os defensores da nação, o ó do borogodó, estas coisas.

E favela virou comunidade, e direitos civis viraram cidadania, e ações de prevenção viraram sustentabilidade, entre outras pérolas desta Inculta e Bela. Já vi em algum lugar a expressão “Cidadania Sustentável”. O que significa esta porra?! Da criação desta nova interpretação de Cidadania para o abuso foi um passo. Vagabundo enchendo o saco de todo mundo no Metrô ouvindo no último volume uma merda de um Funk pode? Pode, está expressando seu direito cidadão de optar por um estilo musical e demonstrar sua preferência aos pobres circundantes. Polícia prender maconheiro na USP pode? Não pode, os jovens estudantes tem o direito de usar dos frutos da natureza como quiserem, é seu direito cidadão. Passeata na Av. Paulista, atrapalhando o trânsito e fodendo a vida de todo mundo pode? Não pode, mas pode. Explico: É proibido, mas em face do direito cidadão de expressar suas opiniões livremente, grupelhos de desocupados mal-intencionados fazem manifestações na “Mais Paulista das Avenidas” (Quando os jornalistas vão parar de escrever esta bobagem?) e danem-se aqueles que precisarem de um dos muitos hospitais da região.

Então acho que entendi: Cidadania, de acordo com a Nova Gramática Publicitária, é o conjunto de nossos direitos mesmo que atrapalhem os outros. Então ta.

Proponho então, a partir de agora, que compensemos esta desgraceira com ações de Civilidade. Sei que muitos vão estranhar a palavra, cujo sentido talvez desconheçam, mas refere-se ao conjunto de ações que os antigos chamavam de “Boa Educação” e que, se aplicados no dia a dia, podem tornar a vida das pessoas mais leve e prazerosa.
Exemplos? Pois não, lá vai:

Peça por favor, ao solicitar algo de alguém. Qualquer coisa.
Agradeça com um muito obrigado quando for atendido.
Cumprimente as pessoas com um bom dia, boa tarde ou boa noite, conforme o caso, ao entrar em algum lugar – incluídos elevadores. Não importa se vão retribuir, o que interessa é sua atitude.
Despeça-se com um até logo ao sair destes mesmos lugares, pelas mesmas razões.
Não finja que está dormindo no Metrô para não dar lugar a alguém que precisa estar sentado mais do que você. Dê logo a porra do lugar!
Não incomode os outros com sons que muitas vezes só você gosta, use fones de ouvido ou escute esta merda na sua casa.
Dê passagem às pessoas mais velhas, às mulheres com crianças (nascidas ou por nascer), para aqueles que não se movimentam tão bem quanto você, enfim seja gentil cacete!

Então é isso, acho que já me estendi demais. Vamos adotar o slogan “Mais Civilidade e Menos Cidadania”, acho que pode funcionar.

Nota 1: Não é que eu odeie particularmente os publicitários, odeio quase da mesma forma outros profissionais: médicos, advogados, administradores, economistas, jornalistas, etc. Na verdade não gosto de quem usa de sua profissão para enganar os outros, simples assim.

Nota 2: O título “Cidadanias, Civilidades e o Guarda-Roupa” é uma homenagem ao título das Crônicas da Nárnia; “O Leão, A Feiticeira e o Guarda-Roupa”, que eu acho sensacional.

E mais não disse, nem lhe foi perguntado.

Saudações Republicanas.