Da minha janela não vejo o mar, nem as montanhas, nem campos verdejantes como aqueles dos anúncios de desodorantes femininos ou de absorventes higiênicos. Vejo duas ou três arvores, a rua lá embaixo, e na frente um enorme paredão branco cheio de janelas. Rua pequena, estreita, um prédio de cada lado, o meu menor e mais baixo, o outro grande, mais de vinte andares, largo, com varandas na sala. Os apartamentos do prédio vizinho parecem bons, nunca os visitei, sala grande com varanda, três quartos e, imagino, outras dependências necessárias ao bom desempenho de suas funções. Minha vista concentra-se nas varandas e salas, já que os demais cômodos ou ficam fora do alcance de visão ou permanecem com cortinas fechadas preservando a privacidade dos moradores. E é ai que começa a viagem.
A qualquer momento que eu chegue perto da minha janela olho, queira ou não, para o prédio vizinho, não tem como evitar. E minha área de visão concentra-se naqueles apartamentos na mesma altura que o meu ou em andares próximos, abaixo ou acima. E começamos a criar enredos para os personagens desconhecidos, mas tão freqüentes, de cujas vidas partilhamos um pouco todo dia, mesmo sem querer.
Minha personagem favorita era a Maria Louca. Oitavo ou nono andar, coluna da direita. Quarenta e poucos anos, não sei se bonita ou não, nunca consegui definir. Passava os dias com janelas e cortinas fechadas, acho que dormindo, e aparecia mais para o fim da tarde. Nos finais de semana, começando na sexta-feira, é que a coisa pegava fogo. À medida que as horas iam passando ela começava a elevar o tom de voz e a aumentar o som da TV, aonde rodava interminavelmente um DVD da Ana Carolina ou outro parecido. O famoso efeito cachaça. Falava muito ao telefone, quase sempre brigando com alguém. Às vezes aparecia algum acompanhante. Havia um mais regular, que circulava pelo apartamento de cuecas vermelhas e com quem ela começava a brigar lá pelas duas da manhã, ordenando que fosse embora. Certa vez, no meio de uma discussão, ameaçou pular da varanda chegando a colocar uma perna para o lado de fora da grade de proteção. Quando a baixaria era muita, na segunda-feira seguinte aparecia um casal mais velho, cabelos brancos, e ela ficava se explicando para o homem (pai?), que só balançava a cabeça. Vendeu o apartamento para o Vovô e mudou-se, acabou a festa.
Vovô fez pequenas obras, acho que para consertar os estragos, pintou o apartamento e mudou-se. Um casal de idade e um cachorrinho. Aonde o Vovô fosse o bichinho ia atrás, estavam sempre juntos nas caminhadas pela casa. Cheguei a encontra-los na rua em algum passeio para que o animalzinho fizesse suas necessidades, suponho eu. A Vovó pouco saia do quarto, aparecendo no horário das refeições e movia-se com dificuldade. De repente o cãozinho sumiu, acho que morreu. Vovô entrou numa depressão de dar dó, não circula mais pela casa, não sai mais à rua, só o vejo na hora da sopa e olhe lá. Morro de pena, deviam ser grandes amigos.
Um ou dois andares acima do Vovô mora o Alemão. Sozinho, meia idade, calvície avançada, magro, passa os dias trabalhando em um notebook na varanda. Senta-se em uma espreguiçadeira e fica muitas horas naquele computador. Gosto de imaginar que ele fica jogando o popular game “Transferência Ilegal de Fundos para o Exterior”, mas na verdade não sei o que o bicho fica fazendo. Faz seus lanches lá mesmo e toma jarras enormes de suco (?). Às vezes aparecem alguns amigos e jogam sinuca na mesa que existe no meio da sala. Nada muito barulhento fora algumas cantorias que não entendo, provocadas pelos Schnaps.
Na coluna da esquerda o Comandante, sexto ou sétimo andar. Na verdade a moradia deve ser da, digamos, amiga do Comandante, já que ele aparece de vez em quando. Sessentão, elegante, grisalho nos cabelos e no bigode bem tratado. Quando ele está, o casal aparece na varanda para fumar, coisa que ela nunca faz sozinha, limitando-se a cuidar das plantas. Fumam, conversam, às vezes vão para dentro e voltam para fumar após algum tempo. O mal educado joga a bituca para baixo, acreditam? E ai ele parte, ficando dias sem aparecer, às vezes semanas.
Acima do Comandante a Sharon. Loira, aparentemente jovem, vem à varanda para fumar. Deve ser patrulhada pelos outros moradores, que não querem aquele mau cheiro lá dentro. O apelido deve-se a um certo exibicionismo, levando minha mulher a ficar de olho em mim para ver se eu não fico de olho nela (na Sharon). Bobagem. São todos muito altos na casa dela, quando fazem alguma reunião familiar é que dá para perceber.
Notei só uma ofensa: "não sei o que o BICHO fica fazendo" (?!?). Bem escrito. Ainda bem que Vc não é meu vizinho!
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