Fui morar na Rua Fernandes Vieira, no Belém, com doze ou treze anos, não lembro bem. Meus pais quando casaram compraram um sobradinho na Rua Toledo Barbosa e foi lá que nasci e cresci até mudar para a nova casa, que era no mesmo quarteirão, só virar a esquina. O sobradinho tinha ficado pequeno, afinal a esta altura do campeonato já éramos quatro filhos (e depois viriam mais três) e não cabíamos na casa da Toledo. A nova casa era maior, com três quartos, duas salas e até uma garagem na frente, coberta por uma laje, onde meu pai passou a guardar as tranqueiras com as quais transitava – Nashs, Studbakers, Buicks, eventuais Kombis - e que anteriormente ficavam na garagem do Sr. José, um português que tinha um estacionamento no Largo São José do Belém.
Quando nos mudamos a rua ainda era de terra, sem calçamento de paralelepípedos ou asfalto, o que facilitava muito as brincadeiras da molecada, mas fazia muita sujeira já que ficávamos cobertos de pó ou barro até os cabelos para alegria de nossas mães. Minha traiçoeira memória me diz que ficávamos o dia inteiro na rua. Era chegar da escola, comer alguma coisa ligeirinho e cair fora antes que minha mãe me desse alguma tarefa, coisa que eu nem sempre conseguia. Ao que me lembre, eu nunca fiz lição de casa na minha vida.
Tinha moleque a dar com um pau na Fernandes Vieira. Nem todos moravam lá, claro, mas apareciam de todos os cantos pelas facilidades que a rua pouco movimentada oferecia aos praticantes dos diversos esportes olímpicos da época. Futebol, Bolinha de Gude, Malha, Mana-Mula (Carniça, Sela), Taco, Pião, enfim esportes competitivos de alto nível. Os apelidos que colocávamos uns nos outros seriam casos de polícia, hoje em dia. Edison Mãozinha havia nascido com um dos braços e a respectiva mão defeituosos, braço curtinho e mão atrofiada e com poucos dedos, não sei se foi uma das primeiras vitimas da Talidomida. Nagib Turco, de origem árabe, Magid Porcão, que não era palmeirense, só não tomava banho nunca, Zecaolho, um José Carlos vesgo de dar dó e que jogava muita bola, como pode? Orelha, Zé Preto, cada apelido pior que o outro. Estas ONGs politicamente corretas de hoje em dia fariam a festa nos processando.
Durval Viadinho era um menino um pouco mais novo que os demais e saia pouco à rua. Seus pais pareciam ter mais idade que os outros casais e o desinfeliz era tratado a Leite com Pêra, Ovomaltino, Sucrilhos no Prato, estas mordomias. Era mimado demais e, nas poucas ocasiões em que vinha para fora, enchia tanto o saco dos maiores que acabava tomando uns cascudos. Eu mesmo devo ter lhe dado umas porradas uma meia dúzia de vezes. E ai sua mãe entrava em ação, xingando, reclamando com as outras mães, gritando, um inferno, acho que ela não gostava muito do apelido que demos ao seu pimpolho. Nossas mães, por dever de ofício, enchiam nosso saco depois havendo até casos de reclusões temporárias por causa das reclamações da progenitora de Durval Viadinho. Era um capeta aquele moleque.
Certo dia, ao chegar da escola, vejo o maior salseiro na porta da casa do Durval, ambulância, polícia, toda a vizinhança, a maior bagunça. Acabei sabendo que o pai dele havia tentado o suicídio, o que eu não sabia muito bem o que era. Parece que tinha dado um tiro na cabeça, imaginem só. Os comentários eram os mais diversos, desde análises filosóficas sobre as causas de tão tresloucado gesto até comentários de alguns maledicentes, dizendo que se fossem casados com aquela megera também teriam se suicidado.
Mas o homem não morreu! Análises científicas que circularam entre os jovens comentaristas davam conta que o suicidante havia utilizado munição de calibre inferior ao da arma, provocando folga no tambor e no cano do revólver usado. Isto reduziu muito a força de saída do projétil, tornando-a insuficiente para liquidar a fatura, mas não evitando um grande estrago. Comprei esta versão como boa, já que não sou especialista em balística e achei que havia lógica na explicação.
Depois de algum tempo internado o pobre-diabo voltou para casa e nunca mais saiu. Aparecia na janela de vez em quando, de pijamas, dava uma olhada triste para a rua e voltava para o casulo. Alguns diziam que a bruxa ainda comentava com ele: “Nem para se suicidar você presta!”. A molecada pode ser muito má. Aos poucos o assunto foi para as páginas centrais de nossos interesses e deixamos o caso de lado. O Durval praticamente não saiu mais à rua.
E este foi o evento mais importante que aconteceu na Rua Fernandes Vieira, ao menos enquanto morei lá.
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