sábado, 2 de março de 2013

Quem dá aos pobres...


Naquele dia ela acordou decidida a acabar com aquela vergonha. Já estava na empresa há mais de dez anos e, apesar dos esforços imensos de seu antecessor – um santo homem, a situação persistia. No princípio era a principal assistente do Chefe, com muitos poderes mas não o poder supremo de resolver todos os problemas, isto era com ele. E olha que ele se esforçou, tentou de várias formas acabar com os problemas herdados dos Chefes anteriores e que mantinham aquela organização praticamente na idade das trevas. Muitos progressos foram feitos, à custa de alianças com antigos adversários, algumas vezes ferozes algozes, e com pessoas de reputação nada exemplar. Mas o Chefe sempre lhe dizia que isso era necessário para manter a organização funcionando, a caminho de seu destino brilhoso e feliz (o Chefe não era muito bom em gramática, mas ninguém é perfeito). Quando passou a ocupar o cargo principal logo tomou a providência de mudar o título de Chefe para Chefa, afinal era importante que todos soubessem que, pela primeira vez na história daquela empresa, uma mulher ocupava a cadeira de espaldar mais alto. Muitos a criticaram por isso, mas para quem já tinha enfrentado torturas, exílio, e quem sabe quais outras provações, estas críticas não fizeram nem cócegas.

Agora ela iria dar uma basta numa situação que muito lhe incomodava. No caminho do trabalho, a bordo de seu carro importado, blindado e com os vidros escurecidos (fumê para quem prefere), ela podia observar que, sim, havia MISERÁVEIS pelo caminho. Pessoas que viviam em condições sub-humanas, quase animalescas. Isto a revoltava, afinal não fora para ver isso que enfrentara tantas adversidades e tanta luta, que tivera que sacrificar seus princípios pelo que o Ex-Chefe chamava de governabilidade (ele tinha lido a palavra numa revista e a usava sempre que possível, mesmo sem saber o que queria dizer exatamente). Em outros tempos ela poderia sair em peregrinação, sentar-se sob uma árvore e, como Buda, meditar por meses, talvez anos, até alcançar a iluminação. Mas não, os tempos são outros e exigem medidas de efeito mais imediato.

Chamou então seus principais ajudantes, alguns recebidos por herança do Santíssimo, como também era conhecido seu antecessor, e que ela não sabia muito bem o que faziam, e ordenou: Quero acabar com a miséria por aqui imediatamente, hoje mesmo. Façam sugestões, vamos escolher a melhor e colocá-la em prática sem demora. Foi uma balbúrdia, todos pensando ao mesmo tempo, o que não era comum por ali, dava para ouvir o ranger de neurônios enferrujados tentando fazer alguma coisa que prestasse.

Pronto, foi instalada a primeira dúvida em tão nobre propósito. Qual é o valor que tira alguém da miséria? Este valor deveria ser individual ou por família? Um estagiário que estava por ali por não ter nada melhor para fazer sugeriu: Que tal um salário mínimo por pessoa, já que este valor é reconhecido pela Constituição como o mínimo que um indivíduo deve ganhar para garantir sua subsistência. Gargalhadas gerais. Estes garotos falam sem pensar. O responsável pela chave do cofre disse: Sabemos quantos são estes, com perdão da má palavra, miseráveis? Outra confusão, ninguém tinha a menor idéia. As estimativas eram desde poucas centenas, vistos os maravilhosos programas sociais criados à época de Sua Santidade, seu antecessor, até vários milhões de pobres coitados. Ficou resolvido que o número seria estimado em sete milhões de almas, se é que estes esquecidos têm uma. Logo começaram a fazer as contas e viram que não havia dinheiro no cofre para sustentar tanta gente, era necessário estabelecer um valor que não levasse a organização à bancarrota, destino previsto por alguns detratores da atual administração, uma cambada de invejosos.

Neste momento o apontador do Jogo do Bicho, estritamente proibido e por isso mesmo muito praticado, que passa diariamente para recolher as apostas e informar os resultados avisou: hoje deu porco na cabeça, a milhar foi 1.970. Superada a péssima lembrança que esta data desperta alguém sugeriu: vamos estabelecer em setenta cruz-credos (moeda local) o valor para erradicação definitiva da miséria. A sugestão foi aprovada de imediato, mas o cara da chave ressaltou: o dinheiro ainda não dá. 70 X 7.000.000 = 490.000.000 de cruz-credos por mês, CC 5.880.000.000 por ano. Assim não há cruz que aguente, disse o herege. Uma bonitona, que ninguém sabia o que fazia na empresa mas que já estava agendada para a capa da Sexy do próximo mês, sugeriu: No lugar de darmos CC 70 para cada pobrezinho, vamos complementar a renda até este valor. Cada um receberá o necessário até chegar ao mínimo estabelecido pelo PDEM (Programa Dela de Erradicação da Miséria), nome que havia sido sugerido ao início da reunião e aprovado por unanimidade. Refeitas as estimativas, viu-se que pela nova e sagaz metodologia o total ficaria próximo de CC 2.990.000.000 por ano, suportável segundo o homem da chave. Esperem um pouco, alertou o organizador oficial de filas, temos que tomar cuidado para não virar bagunça. Neguinho não pode ir ao Bancão e dizer simplesmente: sou miserável e ganho CC X por mês, vá passando o que falta para completar CC 70. Temos que criar um cadastro geral da miserabilidade, no qual os interessados devem se inscrever para, depois de rigorosa avaliação, receberem os valores a que teriam direito pelo maravilhoso PDEM criado pela senhora, Vossa Reverendíssima (além de puxa-saco era ignorante no uso dos pronomes de tratamento). É claro que para tanto será necessária uma estrutura adequada, o que nos ajudaria a dar emprego aos milhares de comparsas que estão por ai sem fazer nada e que gostariam de um dinheiro extra. Estimo em CC 150 bilhões / ano o total necessário ao bom funcionamento destes novos setores da administração. Se este montante for insuficiente sempre poderemos votar uma verba complementar.

Como estava quase na hora da novela, a proposta foi aprovada por todos. Ela recomendou urgência na implementação destas saneadoras medidas e solicitou ao marqueteiro que desse prioridade à divulgação destas maravilhas da gestão empresarial, afinal a próxima reunião de acionistas está chegando e precisamos garantir o apoio destes imbecis.  

Naquela noite, após jantar, tomar um Cinzano Branco Doce e ouvir La Barca com Luiz Miguel, foi dormir com a consciência tranquila, havia resolvido mais um problema desta tão maltratada corporação.

Bons sonhos, senhora.

Nenhum comentário:

Postar um comentário