Naquele
dia ela acordou decidida a acabar com aquela vergonha. Já estava na empresa há
mais de dez anos e, apesar dos esforços imensos de seu antecessor – um santo
homem, a situação persistia. No princípio era a principal assistente do Chefe,
com muitos poderes mas não o poder supremo de resolver todos os problemas, isto
era com ele. E olha que ele se esforçou, tentou de várias formas acabar com os
problemas herdados dos Chefes anteriores e que mantinham aquela organização
praticamente na idade das trevas. Muitos progressos foram feitos, à custa de
alianças com antigos adversários, algumas vezes ferozes algozes, e com pessoas
de reputação nada exemplar. Mas o Chefe sempre lhe dizia que isso era
necessário para manter a organização funcionando, a caminho de seu destino brilhoso
e feliz (o Chefe não era muito bom em gramática, mas ninguém é perfeito).
Quando passou a ocupar o cargo principal logo tomou a providência de mudar o
título de Chefe para Chefa, afinal era importante que todos soubessem que, pela
primeira vez na história daquela empresa, uma mulher ocupava a cadeira de
espaldar mais alto. Muitos a criticaram por isso, mas para quem já tinha
enfrentado torturas, exílio, e quem sabe quais outras provações, estas críticas
não fizeram nem cócegas.
Agora
ela iria dar uma basta numa situação que muito lhe incomodava. No caminho do
trabalho, a bordo de seu carro importado, blindado e com os vidros escurecidos
(fumê para quem prefere), ela podia observar que, sim, havia MISERÁVEIS pelo
caminho. Pessoas que viviam em condições sub-humanas, quase animalescas. Isto a
revoltava, afinal não fora para ver isso que enfrentara tantas adversidades e
tanta luta, que tivera que sacrificar seus princípios pelo que o Ex-Chefe
chamava de governabilidade (ele tinha lido a palavra numa revista e a usava
sempre que possível, mesmo sem saber o que queria dizer exatamente). Em outros
tempos ela poderia sair em peregrinação, sentar-se sob uma árvore e, como Buda,
meditar por meses, talvez anos, até alcançar a iluminação. Mas não, os tempos
são outros e exigem medidas de efeito mais imediato.
Chamou
então seus principais ajudantes, alguns recebidos por herança do Santíssimo,
como também era conhecido seu antecessor, e que ela não sabia muito bem o que
faziam, e ordenou: Quero acabar com a miséria por aqui imediatamente, hoje
mesmo. Façam sugestões, vamos escolher a melhor e colocá-la em prática sem
demora. Foi uma balbúrdia, todos pensando ao mesmo tempo, o que não era comum
por ali, dava para ouvir o ranger de neurônios enferrujados tentando fazer
alguma coisa que prestasse.
Pronto,
foi instalada a primeira dúvida em tão nobre propósito. Qual é o valor que tira
alguém da miséria? Este valor deveria ser individual ou por família? Um estagiário
que estava por ali por não ter nada melhor para fazer sugeriu: Que tal um
salário mínimo por pessoa, já que este valor é reconhecido pela Constituição
como o mínimo que um indivíduo deve ganhar para garantir sua subsistência.
Gargalhadas gerais. Estes garotos falam sem pensar. O responsável pela chave do
cofre disse: Sabemos quantos são estes, com perdão da má palavra, miseráveis?
Outra confusão, ninguém tinha a menor idéia. As estimativas eram desde poucas
centenas, vistos os maravilhosos programas sociais criados à época de Sua
Santidade, seu antecessor, até vários milhões de pobres coitados. Ficou
resolvido que o número seria estimado em sete milhões de almas, se é que estes
esquecidos têm uma. Logo começaram a fazer as contas e viram que não havia dinheiro
no cofre para sustentar tanta gente, era necessário estabelecer um valor que
não levasse a organização à bancarrota, destino previsto por alguns detratores
da atual administração, uma cambada de invejosos.
Neste
momento o apontador do Jogo do Bicho, estritamente proibido e por isso mesmo muito
praticado, que passa diariamente para recolher as apostas e informar os
resultados avisou: hoje deu porco na cabeça, a milhar foi 1.970. Superada a
péssima lembrança que esta data desperta alguém sugeriu: vamos estabelecer em
setenta cruz-credos (moeda local) o valor para erradicação definitiva da
miséria. A sugestão foi aprovada de imediato, mas o cara da chave ressaltou: o
dinheiro ainda não dá. 70 X 7.000.000 = 490.000.000 de cruz-credos por mês, CC 5.880.000.000
por ano. Assim não há cruz que aguente, disse o herege. Uma bonitona, que ninguém
sabia o que fazia na empresa mas que já estava agendada para a capa da Sexy do
próximo mês, sugeriu: No lugar de darmos CC 70 para cada pobrezinho, vamos
complementar a renda até este valor. Cada um receberá o necessário até chegar
ao mínimo estabelecido pelo PDEM (Programa Dela de Erradicação da Miséria),
nome que havia sido sugerido ao início da reunião e aprovado por unanimidade.
Refeitas as estimativas, viu-se que pela nova e sagaz metodologia o total
ficaria próximo de CC 2.990.000.000 por ano, suportável segundo o homem da
chave. Esperem um pouco, alertou o organizador oficial de filas, temos que
tomar cuidado para não virar bagunça. Neguinho não pode ir ao Bancão e dizer
simplesmente: sou miserável e ganho CC X por mês, vá passando o que falta para
completar CC 70. Temos que criar um cadastro geral da miserabilidade, no qual
os interessados devem se inscrever para, depois de rigorosa avaliação,
receberem os valores a que teriam direito pelo maravilhoso PDEM criado pela
senhora, Vossa Reverendíssima (além de puxa-saco era ignorante no uso dos
pronomes de tratamento). É claro que para tanto será necessária uma estrutura
adequada, o que nos ajudaria a dar emprego aos milhares de comparsas que estão por
ai sem fazer nada e que gostariam de um dinheiro extra. Estimo em CC 150
bilhões / ano o total necessário ao bom funcionamento destes novos setores da
administração. Se este montante for insuficiente sempre poderemos votar uma
verba complementar.
Como
estava quase na hora da novela, a proposta foi aprovada por todos. Ela
recomendou urgência na implementação destas saneadoras medidas e solicitou ao
marqueteiro que desse prioridade à divulgação destas maravilhas da gestão
empresarial, afinal a próxima reunião de acionistas está chegando e precisamos
garantir o apoio destes imbecis.
Naquela
noite, após jantar, tomar um Cinzano Branco Doce e ouvir La Barca com Luiz
Miguel, foi dormir com a consciência tranquila, havia resolvido mais um problema
desta tão maltratada corporação.
Bons
sonhos, senhora.
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