Estava cochilando no sofá com a TV ligada, atividade
na qual venho me especializando, quando começa a maior algazarra e eu acordo
assustado. De repente, como se fosse um ectoplasma querendo reencarnar, meu
cachorro, Seu Bosta, entra correndo na sala: Excelência, excelência!... Toda
vez é a mesma coisa. Quando quer zoar comigo, o pernóstico animal me chama de
excelência, sinal que lá vem gozação ou coisa pior. Desta vez era coisa pior.
Excelência, caso me dê a deferência, gostaria de
entrevista-lo. Calmamente, como é do meu feitio, pergunto: Que porra você quer
agora, quadrúpede dos infernos, fala logo que estou ocupado. Gosto de chamá-lo
de quadrúpede, ele detesta, fica irritado. Estou vendo que o excelência está
ocupado mesmo, deve ser algum novo teste para ver o quanto um humano senil
consegue babar na almofada enquanto cochila, parabéns você está indo bem.
Manda logo, elemento canino, chega de enrolação,
porque você quer me entrevistar? Veja bem mestre, ironizou, quero escrever sua
biografia não autorizada e queria checar algumas informações, afinal meus
leitores têm direito a um mínimo de veracidade não é? Eu tinha travado no “veja
bem”. Sempre que escuto alguém começando uma frase com esta infeliz expressão,
meus pelos arrupiam e eu espero por uma mentira deslavada, uma desculpa
esfarrapada, uma explicação estapafúrdia, por ai. Ele só disse aquele veja bem
pois sabe que eu detesto.
Recuperei-me e indago, matreiro, quem vai se
interessar por minha biografia, autorizada ou não, afinal não sou cantor, não
sou ator, não sou político, não sou nenhuma celebridade, ninguém me conhece,
você vai trabalhar à toa, não vai vender um único exemplar desta obra inútil.
Engano seu, responde o espertalhão, pela quantidade de pessoas que gostam de te
criticar vai vender como pão quente, como dizem os humanos. E estou me baseando
somente em minha pesquisa junto a parentes e amigos. Com uma propaganda bem
feita, alguns depoimentos criticando tuas atitudes, algumas entrevistas na TV
Globo, acho que vai ser um best-seller, vai bater aquela inglesa que escreveu
Harry Potter, conhece?
Conheço, e ela escreveu vários livros, uma
verdadeira saga do menino feiticeiro e suas aventuras, as pessoas adoram estas
coisas de magia, no meu caso seria diferente. Não tem mágica, só ações
destrambelhadas que todo mundo faz. Modesto como sempre, sir, seus
destrambelhamentos são de primeira categoria, um primor da estupidez humana, o
que não é pouca coisa. Como no caso em que Vossa Magnificência colocou fogo no
cesto de roupas na casa de seu avô. Outra vez esta história, ninguém aguenta
mais, já devo ter contado mais de cem vezes! Foi só um exemplo, milord, na
verdade estou interessado naquelas histórias menos divulgadas, as que causarão
surpresa nos leitores. Lembra-se quando perdeu o jogo de compassos de seu pai, que ele adorava e que te emprestou para as aulas de desenho no Estadual de São
Paulo? E quando você prendeu o dedo na porta de um táxi lotação que tinha
tomado para ir à aula, já que estava atrasado como sempre? E as excursões da
molecada da Toledo para roubar erva-doce nas chácaras que havia ao lado da
linha do trem, aonde hoje é a Radial Leste? E os rachas na 21 de Abril? Quer
que continue?
Como você sabe destas coisas se eu nunca as contei
para ninguém? Vossa Eminência esquece que vivo na sua cabeça, e que tudo que
você sabe eu também sei? Verdade, concordei derrotado. Mas se sabe tudo que eu
sei, não precisa de mim para nada, já tem todas as informações, é só escrever.
Nem tanto, querido mestre, nem tanto. Tenho o conhecimento dos fatos ocorridos,
mas não das razões que levaram a eles. Qual teria sido sua motivação para
cometer esta ou aquela besteira? Isto eu não sei. Na maioria das vezes nem eu,
comento resignado.
Veio-me, então, uma ideia maligna. Agora eu ferro
este cachorro, pensei. Seu Bosta, deixei um caderno de anotações na casa de uma
amiga e acho que ele poderia ajudar. Vá até lá, diga que está fazendo minha
biografia não autorizada e peça o caderno para ela. Ela gosta deste tipo de
obra literária, até criou uma associação para ajudar quem escreve estes livros.
O nome dela é Paula Lavigne, não esqueça. Pegue um taxi, eu pago.
Desta vez me livro deste Cérbero do Brooklin.
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