segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Um épico hípico, ou vice-versa.

O convite.

Estive somente duas vezes no Jockey Clube de São Paulo. A primeira há uns dez anos ou mais, num jantar com minha mulher e dois casais amigos, e a segunda no último sábado (03/12/2016), com meu filho Eduardo, que havia conhecido o local recentemente e queria me levar para uma tarde divertida e esportiva (para os cavalos).



As lembranças.

Logo após o convite de meu filho comecei a me lembrar de minha infância, na qual havia os que “jogavam nos cavalos”, como se dizia naquela longínqua época dos que gostavam de fazer uma fezinha nas patas dos garbosos quadrúpedes. As pessoas comentavam, sussurrando, “aquele até que é bom rapaz, mas tem o vício dos cavalos”, “Tio Fulano joga nos cavalos, pobre tia Fulana”, toda família tinha um tio com este assustador vício. Da mesma forma que toda família tem um tio que bebe, havia aquele tio que jogava nos cavalos. Engraçado que não me lembro do mesmo preconceito contra os que gostavam de jogar no bicho ou comprar bilhetes de loteria, hábitos comuns na minha família. 
Na esquina da rua em que eu morava havia uma venda, que pra quem não sabe era um estabelecimento que vendia de tudo. Tamancos, vassouras, feijão a granel, bacalhau, batatas, pinga no balcão, doces acomodados em vitrines fechadas, de vidro (acho que era para que as moscas não fugissem). Do outro lado, na esquina oposta, havia um bar que era território proibido. Lá se reuniam, vejam o perigo, pessoas que gostavam de apostar em corridas de cavalos. Liam jornais e revistas especializados, lembro-me de um chamado “O Coruja”, faziam anotações, conversavam a respeito do estado atlético dos animais e dos jóqueis, uma conversa para iniciados. Cresci assim, cheio de preconceitos a respeito desta maldição que se abatia sobre alguns pobres diabos que, tirando esta marca de Caim, até eram boas pessoas.

A chegada.

E lá fomos nós, para aquele antro de perdição. Na entrada, logo após o estacionamento, um restaurante bacana, com muito movimento, principalmente de belas moças, profissionalmente vestidas, em grupos de três ou quatro, que deveriam estar indo ao encontro de amigos. Os carros estacionados próximos ao tal restaurante eram modelos novos de marcas de luxo. Muitos Audis, BMWs, Mercedes, os melhores exemplares. Pude ver ao vivo, pela primeira vez na minha vida, uma Lamborghini novinha, até me assustei.



Mas ao nos aproximarmos das áreas destinadas aos apostadores e torcedores, dava para perceber a decadência. Instalações que devem ter sido belíssimas há quarenta ou cinquenta anos, precisando de reparos. Pedaços de piso quebrados, móveis e instalações antigos. Até uma inexplicável cabine telefônica, muito antiga, onde se lia “Tele Turfe” e na qual havia um antigo e solitário aparelho telefônico. Imagino que o Jockey Clube deve ter tido seu auge entre as décadas de 1930 e 1960, decaindo a partir daí e perdendo espaço para outros tipos de jogos e diversões. Não imaginem algo brega, não é nada disso, mas a antiga elegância está puída, gasta pelo tempo.

A plateia.

Pouco público, não sei se é assim sempre ou se fomos num dia de menor movimento. No salão central ficam os guichês de apostas, uma lanchonete e vários televisores que transmitem as corridas de outros hipódromos, principalmente do Rio de Janeiro, e mostram os resultados e rateios dos prêmios dos páreos encerrados. E, pasmem, aqueles senhores que ficavam no tal bar proibido estavam todos lá, com as mesmas revistas e canetas, fazendo anotações e discutindo as probabilidades com os amigos. Mas pera lá, não podem ser os mesmos, já se passaram sessenta anos, devem ser os filhos daqueles desvairados apostadores. Inacreditavelmente, nenhum deles vai às arquibancadas para ver as corridas, não saem do tal saguão vendo tudo pela TV, gritam no final dos páreos, xingam os perdedores, riem dos amigos que quase acertaram o ganhador. São todos parecidos comigo, por volta dos setentinha (alguns mais), não há quase jovens. Nós fazíamos nossas apostas e íamos assistir as corridas das arquibancadas, muito mais divertido e saudável.




Os jogos.

Nem meu filho, nem eu entendemos picas deste assunto, então apostar foi um exercício de criatividade. Chegamos no início do terceiro páreo, pudemos ver os animais no aquecimento, ai nossa avaliação prevaleceu. O cavalo mais bonito, o que parecia mais nervoso, estas bobagens. Apostamos e perdemos. Normal. Ai começou uma puta chuva, tivemos que ficar mais abrigados e passamos a fazer nossas escolhas pelo místico critério do nome dos animais. “In The Money”, “Geniale” ou “Ellen Caliente”? Fomos de “In The Money” e o bicho ganhou. Mas era favorito e a grana foi pouca, não compensou o prejuízo inicial. Ai ficou difícil, “Num Carece”, “Olympic Google”, “Justiça Divina Now”, “Senatus”. “Num Carece” foi desclassificado de cara, escolhemos outros e ...perdemos. Percebemos que podíamos apostar na ponta ou no placê, que paga caso o cavalo chegue em primeiro ou segundo, ai as chances aumentam. Mas o prêmio diminui. Sétimo páreo ganhamos uns caraminguás no placê, nada relevante. Oitavo páreo, estamos analisando os cavalos no desfile de apresentação. Os nomes eram muito sugestivos “Falcatrua”, “Opus Uno”, “Veuve Clicquot”, “Ferrari Negra”, “Etoile Home”, todos uma beleza. Fora um horroroso “Kaxaça”, eram todos nomes fortes. Mas ai é que se deu o dilema. Havia dois cavalos tordilhos naquele páreo. Pra quem não lembra, Tordilho era o nome do cavalo que eu, quando garoto, costumava cavalgar na Fazenda Pedra Branca, cuja saga já foi apresentada aqui. Falo para meu filho: Quero jogar num tordilho! Ele: Qual deles? Um era bonitão, garboso, imponente, uma beleza. O outro parecia cavalo de carroça, pescoço caído, olhar tristonho. Arrastava-se na apresentação, cheguei a comentar com meu filho: Este bosta vai ganhar. E o bonitão ainda era o tal “Falcatrua”. Era o destino! Vou nesse. Eduardo escolheu outro cavalo e pimba! Perdemos. Ganhou “Veuve Clicquot”, a égua tordilho com cara de triste.



Último páreo.
Eu tinha avisado o Eduardo na chegada: “Trouxe cem mangos. A hora que acabar, acabou.” Restavam cinquenta e poucos, o resto já tínhamos perdido. Então abandonamos a ciência dos nomes e partimos para a violência. Vamos apostar a olho (como se já não estivéssemos fazendo isso). Ponta e placê em cinco cavalos, só vão restar três. Alguma coisa a gente ganha. Só pra sair com a sensação de vitória. Vamos lá! Eduardo dirigiu-se ao guichê de apostas enquanto eu ficava na arquibancada ouvindo um cara engraçado que fazia piadas num grupo próximo. Meu filho volta e avisa: troquei um dos cavalos, estava pagando muito pouco, não iria adiantar nada. Mudei para um azarão que, se entrar, vamos nos dar bem. Beleza, vamos lá!
Páreo nervoso, cavalos embolados, eu com dificuldade de ver os atletas, só enxergando quando estavam muito perto. “Vai, viado”, “Vai, filho-da-puta”, torcemos na maior elegância. Quem ganhou? Ganhamos? Ganhamos! O cavalo que Eduardo havia escolhido na boca do caixa, o azarão (no caso a azaroa), que havia largado mal, disparou no final e venceu a corrida. Bendita “Morena Rosa”.
Ganhamos cento e vinte cruz-credos. O lucro quase deu para pagar o estacionamento.



Epílogo.

Já estamos planejando novas aventuras equestres. Meu filho estudará sites especializados. Eu assistirei ao clássico dos Irmãos Marx, “Um Dia nas Corridas”.


Nos aguardem!


quarta-feira, 26 de outubro de 2016

Tchau Raphael, Tchau meu Irmão, Tchau Putzgrila.




Meu irmão Raphael morreu ontem, 25 de outubro de 2016. Quase dois anos lutando com uma doença fatal e ele perdeu esta luta. Estou triste pra caralho. Na verdade já estou muito triste desde maio, quando ele teve o que se achou, de início, que fosse um AVC, e depois se constatou que era uma metástase do câncer de intestino que havia operado há um ano e meio, mais ou menos, desta vez no cérebro. Nova operação, muito pior, sequelas, radioterapia, ele já parecia vislumbrar o que estava para vir. Na convalescência desta segunda operação ele ficou uns dois meses na casa de minha irmã Mirinha e de meu cunhado Marco Antonio, que cuidaram dele de maneira carinhosa e dedicada, e eu o visitava todos os dias para conversarmos. Nestas conversas ele demonstrava grande preocupação com o que estava por vir, para ele e para seus filhos. Eu tentava, de todas as formas, amenizar a situação com brincadeiras e uma conversinha mole, tentando não deixar que ele percebesse minha preocupação, mas acho que não deu muito certo. Do final de setembro para cá ele começou a piorar com novos sintomas e dificuldades. Exames comprovaram o retorno dos tumores, inoperáveis, e de lá pra cá foi declinando rapidamente, até acabar.

Alguém pode dizer que ele não era meu único irmão, e é verdade. Mas tem um negócio interessante na minha cabeça, vê ai. Dona Delmira e Seu Raphael tiveram sete filhos, divididos em dois blocos. No primeiro bloco, eu, a Silvia, a Mirinha e o Raphael. No segundo bloco, com um intervalo de sete anos, o Ricardo, o Alexandre e o Marcelo. Para mim, meus irmãos são os do primeiro bloco, os do segundo são como se fossem meus filhos. A diferença de idade que tenho para os três últimos é grande, treze anos com o Ricardo, quinze com o Alexandre e dezoito com o Marcelo. Tanto assim que fui eu que levei minha mãe ao hospital para ter o Marcelo. Meu pai, ao sair para o trabalho, deixou o carro comigo para alguma emergência e ai, pimba, Marcelo resolveu nascer. Eu já era devidamente habilitado e levei Dona Delmira para a maternidade, uma experiência inusitada, levar a própria mãe para ter um filho.


Irmão é aquele cara com quem você brinca e com quem você briga. É aquele que rouba seu brinquedo e de quem você pega aquele brinquedo que ele mais gosta. Irmão é aquele cara que num dia você ama com todas as suas forças, e no outro você quer matar o desgraçado. Estas emoções, ao menos para mim, foram maiores com os do primeiro bloco. Já os do segundo, que amo da mesma forma, eu levava pra escola, ao barbeiro, para passear, coisas assim meio paternais, dá pra entender?

E quando morre alguma pessoa muito próxima, como o Raphael era para mim, parte de você também morre. Memórias que só vocês dividiam, histórias do que viveram juntos, tudo isso desaparece. E eu e o Faelito, um dos apelidos que ele teve, vivemos muita coisa juntos. Ele me seguiu em muitas coisas. Na turma que eu frequentava, a Turma do Palacete, ele fez parte da segunda geração. Até meu apelido, Magrão, ele herdou, apesar de nem ele nem eu fazermos mais jus a tal alcunha. Passou o diabo nos últimos dez anos. Sua mulher, Rosana, sofreu horrores com uma doença degenerativa que a maltratou por mais de oito anos até leva-la definitivamente. E quem cuidou dela foram meu irmão e seus filhos, com todo o sofrimento que isso representa. Pouco depois do falecimento de Rosana, quando se achava que haveria um pouco de normalidade na vida, surge o câncer de intestino. O resto eu já comentei. Sei que não é disso que se trata, mas o Ito (diminutivo de Faelito) não merecia tudo isso.

Agora é tocar pra frente, sem ele, sem suas lorotas, ele não vai mais tomar cerveja e nem pinga envelhecida no corote, não vai mais fazer moqueca ou algum outro prato que fazia tão bem, era um bom cozinheiro. Não vai mais voltar para Veneza, cidade na qual passou pouco mais de um mês, a trabalho, e pela qual se apaixonou, não vai mais pescar nem ficar na praia conversando com os amigos. Não vai mais mentir dizendo: Vim de Caraguá em menos de duas horas, puta lorota. Tudo isso virou fumaça. Ia contar aqui umas histórias dele, mas não vou, não estou no clima. Sei que não serei o único a sentir a falta dele, mas eu sentirei muita falta.


E o putzgrila, onde entra? Foram as últimas palavras que ele me disse. Fui ficar um pouco com ele no hospital, ele já quase não falava mais nada, e ao sair me despedi com uma expressão que ele usava muito: Tchau Putzgrila. E ele repetiu, Tchau Putzgrila. Foi só. Depois disso, nas outras visitas, nenhuma palavra. Só penso numa frase para terminar esta conversa toda, que é a última de uma prece irlandesa famosa e que minha irmã Silvia gosta muito:

- Até que eu de novo te encontre, que Deus te guarde na palma da mão. Que assim seja.



Tchau meu querido irmão, tchau Raphael, tchau Putzgrila, um beijo. Boa Viagem.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Festa da Firma!



Em toda festa de fim de ano das empresas tem alguém que exagera. Pessoal não está acostumado com tanta bebida grátis e acaba indo com muita sede ao copo. Já assisti muita baixaria, talvez até tenha feito algumas, mas há historias que ultrapassam as mais espantosas previsões. O caso relatado a seguir é verídico, provêm de fonte absolutamente confiável, e aconteceu numa festa de fim de ano de uma grande empresa. As identidades dos envolvidos não serão reveladas para evitar maiores constrangimentos aos participantes e preservar a dignidade restante dos mesmos. Então, Keep Walking.

Mané, nome fictício, bebeu demais. Demais não, bebeu pra caralho, padrão de medida para exageros em geral. A partir de determinado momento não parava mais em pé, estava começando a dar vexame e a constranger os amigos. Rápida confabulação e dois bons samaritanos tomam a decisão de levá-lo para casa. Primeiro problema: Onde mora Mané, alguém sabe? Ninguém sabia, um tinha ouvido falar que era próximo da 9 de julho. Fácil, né? Vamos perguntar a ele, pensou um dos samaritanos. Mané, onde você mora? Glubstruin madttp! Como? Não entendi. Truisrralmno, julllllll. Como? Não é perto da 9 de Julho? Mané balançou a cabeça para todos os lados, no que foi entendido como um “Sim”.

Então vamos, diz Samaritano 1 para Samaritano 2. Toca a amparar o infeliz, um de cada lado, tentando chegar até o carro. Papelzinho para o valete, espera de meia-hora, escorando o maldito que insistia em cair, chega o carro. E agora? Se ele for atrás, vai deitar, pegar no sono e ninguém mais vai conseguir tira-lo desta merda. Fora a possibilidade de que ele vomite em nossas nucas. Para quem vomitou na mesa de salgadinhos, passou a mão na bunda da mulher do chefe e mijou na pia da cozinha, seria fichinha. Bem pensado, vai no banco da frente. Abre a porta, puxa o banco, e tenta colocar Mané no lugar. Uma luta. O bicho balançava para lá, balançava para cá, uma puta dificuldade. Afinal conseguiram rapidinho, não mais que 45 minutos. Nisto são 3.30 da madruga. Colocaram o cinto de segurança em Mané, a bem da verdade ele foi amarrado com o cinto, para que não caísse, e vamos lá.

Mané, 9 de Julho em que altura? Zrsrrt Gafftt. Não entendi um caralho, e agora? Mané, faz um esforço ai, em que altura da 9 de Julho? Prtdd Gabrrrll. Próximo da São Gabriel, é isso? Mané balançou a cabeça novamente, deveria ser por ali. Chegaram à área indicada (?!), por sorte três ou quatro prédios. Qual é o prédio, Mané? O bicho não respondia. Vamos por tentativa e erro, diz Samaritano 2. Vamos lá. Mané, qual é seu apartamento? &&dt5wç. Pronto, pensou Samaritano 1, vai dar merda. Deu.

Depois de muito insistir, deduziram que Mané morava no apartamento 23 de um daqueles prédios, mas qual? Pararam na frente do primeiro, com a chave retirada do bolso do elemento, e começaram a dialogar com Porteiro 1. Boa noite viemos trazer Mané para casa. Mas este cara não mora aqui. Como assim, ele diz que mora. Mora, não mora, Porteiro 1 acedeu, tá bom, pode levar, mas eu continuo achando que ele não mora aqui. Descarrega o Mané, empurra até o elevador, mete a chave na porta e. não era. Toca a campainha e, por sorte, ninguém atende. Empurra de volta para o elevador, desce, sai do prédio e agradece ao Porteiro 1, que reforça: não falei?!

Prédio 2, Porteiro 2, mesma história. Mas este reconheceu Mané. Ele mora aqui, sim senhor, só não sei qual é o apartamento. Esta é fácil, pensaram os samaritanos, é o 23. Não era. Chave na porta, campainha, um cara mal humorado (pudera, quase cinco da manhã) abre a porta e gentilmente argumenta: Que porra é esta, são 5 da manhã, qual é? Viemos trazer o Mané, ele bebeu um pouco a mais na festa da firma. E eu com isso, este merdinha não mora aqui, acho que mora no 123, e bateu delicadamente a porta. Parece que foi trocada ontem. Elevador, empurra, chave na porta e. era. Jogaram Manoel na cama, bateram a porta ao sair, agradeceram ao porteiro. Ufa! Missão cumprida.

No dia seguinte, Manoel pergunta: Alguém sabe o que aconteceu ontem na festa? Não lembro como fui parar em casa. Quase foi linchado.  


“Se non é vero, é bene trovato”.

domingo, 13 de março de 2016

Para uma pessoa aflita.

Meus filhos, as coisas mudam, as circunstâncias mudam, as pessoas mudam. Vocês estão mudando, eu também. Sei que vocês têm enorme preocupação com meus temores, minhas dores, minhas aflições, mas nem pensem em evitar todos os meus sofrimentos, não vão conseguir. Já devem ter aprendido que, mesmo que queiram, não conseguem evitar todas as frustrações, desenganos e dores de seus próprios filhos, isto não é possível, por mais que se esforcem. Então, mães e pais são filhos no vice-versa. Vocês gostariam que eu fosse o mesmo de dez ou vinte anos atrás, eu também, mas não dá.
As pessoas ficam doentes, as pessoas têm dificuldades físicas, as pessoas envelhecem, as pessoas morrem, e comigo não será diferente. Estas coisas acontecerão com todos, aqueles que cuidaram da saúde, o que não é exatamente o meu caso, e aqueles que a maltrataram, acontecerão com sedentários e com atletas olímpicos, com magros e com gordinhos, com todos, afinal.

Minha memória falha, em alguns dias mais em outros menos. Lembro-me do nome de minha professora do quarto ano primário, Dona Zilda, e não me lembro onde guardei as malditas chaves e nem onde deixei meus óculos. Minha coluna parece que tem seiscentas vértebras, e todas doem. Coisas que funcionam bem num dia, já não vão tão bem no outro. E vocês não podem fazer muita coisa. Podem me acompanhar ao médico, podem comprar meus remédios, podem me lembrar de a que horas devo tomá-los, mas pouco mais além disso. O que espero, e gosto, é que me façam companhia, conversem comigo, mesmo que eu repita várias vezes a mesma história. Como não lembro se já contei, por via das dúvidas conto novamente. Gosto quando me fazem um agrado, um mimo, mas não gosto quando querem me forçar a alguma coisa. Estou sem fome? Tudo bem, uma hora ela aparece. Estou sem sono? Idem. Não impliquem comigo por estas minúcias.
E, principalmente, não esperem conseguir evitar o inevitável, não conseguirão. Compreendam que este é o curso natural da vida, não se desesperem e nem se aflijam em demasia. Cuidem de mim, mas não me sufoquem.
E, quando chegar aquela hora, naquele dia, aceitem. Rezem por mim, se quiserem, lembrem de mim como fui durante toda minha vida e não só no final. Fui bom e fui mau, fui justo e fui injusto, fui compreensivo e fui intolerante, fui amigo e fui distante, afinal sou um humano. Mas lembrem-se sempre, meus filhos, nunca deixei de amá-los com todas as minhas forças. Agradeço a tudo o que me ensinaram e a tudo o que fizeram por mim. Beijos.


Ps.: Não tenho nenhuma intenção de que estas situações ocorram em breve, apenas quis registrar minhas opiniões e pensamentos. Talvez ajudem algumas outras pessoas que não tem a oportunidade de manifestar seus sentimentos, que eu imagino sejam parecidos com os meus. 

domingo, 10 de janeiro de 2016

Nikita.

Meus pais tiveram cachorros desde sempre, não me lembro de nenhum período em que não houvesse ao menos um pelo meio. Casas pequenas, casas maiores, não importava o tamanho do imóvel, a questão é que o cachorro sempre fez parte de nossa família. Tinha o pai, a mãe, os filhos e o cachorro. Sempre. Cachorros grandes, cachorros pequenos, cachorros de raça, vira-latas, muitas vezes mais de um. Para minha mãe era como se fosse um filho a mais, afinal pra quem tem sete, um ou dois a mais não vão fazer tanta diferença. Vinham de todos os lugares. O pai ganhava de um amigo, um filho achava um na rua, alguém da família tinha uma ninhada para despachar. E acho que Dona Delmira não teria sabido viver sem um cachorro ao pé.

Alguns foram famosos, como a Chispa, uma mestiça de basset salsicha esperta como ela só. Não falava não porque não soubesse, era porque não precisava. Estava sempre uns três lances à frente. Ia rolar uma confusão? Ela já sabia e se antecipava, procurando um esconderijo. Ia chegar alguém querido? Ela começava a fazer festa antes do carro virar a esquina. Era esperta mesmo, aquela menina. Mas era a cachorra do meu pai, vivia atrás dele, alimentando até algumas brincadeiras familiares, daquelas repetitivas. “Sai daí, Chispa!”.

E um dia ela chegou. Não sei de onde veio, simplesmente apareceu. Uma cachorra grande, seus dois ou três anos, mestiça de Pastor Alemão com Pastor Belga, pelagem mais densa que a dos pastores alemães, escura no dorso, peito amarelo e, acho, umas manchas amarelas perto dos olhos. Apareceu na Rua Ouro Branco e foi ficando. Meus irmãos logo adotaram e começaram a pedir para a mãe para ficarem com ela. Dona Delmira sabia das coisas, foi assuntando antes de decidir. Um pote com água e outro com comida no jardim, portão aberto, e ela vinha. Ficava um pouco, comia, bebia, descansava e ia embora, mas sem se afastar muito. Não sei quando foi que ela e minha mãe se acertaram, mas um dia ela foi adotada em caráter permanente, ganhou um nome e nunca mais foi embora. Nikita. E ela foi a companheira de minha mãe.

Desenvolveram uma amizade tão forte e tão próxima, que nem precisavam falar uma com a outra. Bagunça no quintal? Minha mãe olhava para Nikita e ela ia dar uma conferida. Voltava, olhava para minha mãe e esta já sabia se era besteira ou se era algo que exigisse sua atenção. Mas não era uma cachorra dada a intimidades com qualquer um, não se dava ao desfrute. Nada deste negócio de barriga para cima para alguém fazer carinho, ela não era destas. Não era agressiva, destas de ficar latindo e mostrando os dentes, mas impunha respeito por seu comportamento sério. Gostava de todos na casa, brincava com os menores, mas era da minha mãe.

Certa vez minha mulher, Maria Clara, deixou nossa filha Patricia ainda bebê aos cuidados de minha mãe para ir a algum lugar. Dona Delmira acomodou a criança dormindo no sofá e comandou para Nikita: Tome conta. Minha mulher volta do compromisso, entra e se dirige ao sofá para pegar a Patricia. Quem diz? Maria Clara vai por um lado, Nikita cerca, vai por outro, Nikita faz um jogo de corpo. Nesta criança você não mexe, devia pensar. Maria Clara percebeu e teve que chamar minha mãe, que só disse: Nikita deixa. Pronto, resolvido.

Nikita foi prolífica, teve várias crias, entre as quais o poderoso Thor, um cachorro grande, forte, totalmente preto, companheiro inseparável de meu irmão Ricardo, e que salvou minha mãe de um assalto no jardim de casa, dominando o meliante que pedia: Pelo amor de Deus, dona, tire este cachorro de cima de mim. Aprendeu, bestão? Outra filha de Nikita foi a Ula, que foi filhotinha para minha casa. Nikita viveu uns treze ou quatorze anos, cachorros grandes vivem menos, e deixou muitas saudades.


Depois dela vieram outras, minha mãe preferia fêmeas, Dashas, Tróias, de raças diversas e temperamentos variados. Mas acho que nenhuma delas substituiu Nikita no coração de Dona Delmira. Acho que poderíamos dizer que eram almas gêmeas. Devem estar juntas novamente.