Marchas, contramarchas, fechos e desfechos.
Mais uma com o primo Marinho Linhares. A fazenda
Pedra Branca tinha duas paisagens predominantes, lagoas e montanhas. Seis ou
sete lagoas, uma porrada de morros, morretes, morrinhos, montanhas, não havia
monotonia visual. A maior das lagoas ficava à esquerda de quem entrava pela
estrada de acesso e ia para a casa sede. Era de grandes dimensões, tanto que
havia até um barco a remo que usávamos para passeios e pescarias. Tinha muita
traíra e muito cará, que hoje chamam de tilápia. Ou não é a mesma coisa? Cheguei
a pescar uma tartaruga de água doce, um cágado, sei lá, um bicho destes
esquisitos e que veio no anzol. Pois então, estávamos eu e o Marinho perto da
lagoa, fazendo alguma merda, jogando pedras nos patos talvez, quando reparamos
que a jabuticabeira estava carregada de frutos. Devia ser verão, já que
estávamos só de calções, indumentária suficiente para dois moleques que iriam
sujar-se até os cabelos, ficava mais fácil para nossas mães lavarem a roupa. Da
visão das frutas à subida na árvore foi um zupt, e lá estávamos nós comendo
jabuticaba no pé. De repente começamos a escutar um zumbido, cuja intensidade
foi aumentando. Não sei quem viu primeiro, mas o alerta foi cruel: Abelhas!
Havia uma enorme colméia de abelhas na árvore e nós não tínhamos visto. Toca
pular fora e correr. Mas não adiantou muito, elas vieram atrás de nós com seus
ferrões, um perrengue. A solução foi pularmos na lagoa, só tirando a cabeça da
água para respirar e ver se as putelas tinha ido embora. Demorou mas foram, que
alívio. Mas ficamos sem as jabuticabas.
O armário da Dona Pepa. Minha avó guardava,
cuidadosamente, algumas iguarias das quais meu avô gostava. Latas de aliche, de
atum, compotas de frutas, doces, azeitonas, tremoços, alguns vinhos e outras
delícias. Para proteger tal tesouro da sanha dos netos e demais esfomeados, ela
trancava o armário com uma chave que ficava sob sua guarda, não soltava nunca.
Sabia com quem estava lidando. Acontece que meus avós ficavam um tempo na
fazenda e de vez em quando passavam um tempo em São Paulo. Em muitas destas
ocasiões meu pai ou meus tios iam para lá levando amigos, entre os quais havia
alguns quase delinquentes, segundo me lembro. O que faziam os fanfarrões?
Soltavam os parafusos da parte traseira do armário, apropriavam-se do que não
lhes pertencia, comiam, bebiam, e recolocavam a tampa como se nada tivesse
acontecido. Ao voltar minha pobre vó Pepa deparava-se com um dilema. Onde foram
parar as coisas que deixei aqui? Acho que ela nunca soube, pobrezinha.
Malfeitores!
A venda perto do Sitinho. O Sitinho era uma área que
não havia sido comprada no início, pertencia a outras pessoas e só foi
adquirida tempos depois, mas nunca perdeu sua identidade própria, sempre foi
chamada de O Sitinho, apesar de fazer parte do conjunto Pedra Branca. Saindo-se
da fazenda por um caminho que passava por ele, dava-se numa estradinha vicinal
que levava a outras propriedades. E lá havia a tal venda. Um pequeno armazém
onde os trabalhadores do local compravam alguns gêneros de primeira necessidade
e tomavam uma cachacinha, que ninguém é de ferro. Os dois irmãos que cuidavam
daquele comércio logo ficaram amigos do meu pai, que tinha muita facilidade em
fazer amigos, gostava de uma conversa de bar e de tomar um engasga-gato para
abrir o apetite. Acho que algumas vezes foi cavalo quem levou Seu Raphael
de volta para casa. Algum tipo de GPS eqüino.
Fogo morro acima. Dormia-se cedo na Pedra Branca. Não
havia televisão e todo mundo ia para a cama lá pelas oito e meia ou nove horas
da noite. Já tínhamos deitado quando alguém bateu palmas e começou a chamar:
Seu Raphael, Seu Raphael. Meu pai foi ver do que se tratava e eu fui atrás. Um
dos empregados contando que tinha começado um incêndio num capão de mato em uma
das invernadas em que ficava o gado. Havia risco de um estouro da boiada ou,
pior, de algumas cabeças morrerem. Meu pai se vestiu, colocou suas botas e ia
saindo quando peço: Posso ir junto? Claro que não, é perigoso e além do mais
alguém tem que ficar cuidando de sua mãe e das crianças. Vacilei e acabei
ficando. Acho que ele me deu um truque e eu nem percebi. Dá-lhe John Wayne!
Tico quebrou o braço. Em uma das viagens o convidado
infantil foi o Tico, meu primo, por parte de mãe, Joaquim Ibitinga, que deve
ser um pouco mais novo que meu irmão Raphael, uns sete ou oito anos mais novo
do que eu. Brincadeira de crianças vocês sabem como é, só param quando cansam
ou quando dá merda. Deu merda. Tico balançava numa porteira, pra lá e pra cá,
desequilibrou-se, caiu e quebrou o braço. E agora, o carro não está aqui,
voltou para São Paulo e só vem nos pegar na sexta-feira. Vamos de trator,
comanda Seu Raphael. Foram buscar o trator, engataram uma carretinha de
carregar coisas, onde minha mãe e o Tico embarcaram. Novamente recebo a missão
de guardar o forte e evitar que os índios seqüestrem meus irmãos e as outras
crianças. Demoraram muito, tratores não costumam ser muito ligeiros, algumas
horas. A encrenca começou à noitinha e só voltaram de madrugada, com o Tico
exibindo um gesso novinho em folha, para inveja dos demais. Mas a alegria dele
durou pouco. Dois ou três dias depois começou a ficar com os dedos roxos, o
gesso estava muito apertado. Médico de merda. Toca ao recém-promovido a
cirurgião-chefe, Seu Raphael, achar uma serra adequada e remover o maldito torniquete.
Foi bem sucedido, lógico, era meu pai.
Mas pouco a pouco comecei a ter outros interesses,
não queria mais ir para a fazenda, preferia ficar em casa, ver minha namorada,
conversar com meus amigos, coisas de adolescente, esta estranha raça. E minhas
viagens para a Pedra Branca foram rareando, até que acabaram. Depois de algum
tempo a fazenda foi vendida, a Mecânica Aguilar já não conseguia sustentá-la.
Ficaram somente as lembranças.
Acabou-se a história. Entrou por uma porta, saiu pela
outra, quem quiser que conte outra.